Gravura de Tavira, de autor
desconhecido do século XVII
Notas para o Atlas Histórico de Tavira
Este texto é um esboço incompleto
do estudo desta fonte iconográfica, a incorporar no Atlas Histórico de Tavira. O plano desta obra pode ver-se neste blog, aqui: Atlas Histórico de Tavira.
Imagem de Tavira. Séc. XVII.
Panorama. Jornal Literário e Instrutivo da Sociedade Propagadora de Conhecimentos Úteis, 2ª Série, vol. 2, nº 80, Julho, 8, 1843
Panorama. Jornal Literário e Instrutivo da Sociedade Propagadora de Conhecimentos Úteis, 2ª Série, vol. 2, nº 80, Julho, 8, 1843
A gravura é uma
"quase-paisagem", em que certos elementos são representados com
dimensões desproporcionadas ou fora da sua posição real para caberem no
enquadramento, e em que o casario secundário é reduzido em número e
simplificado na forma.
O único estudo que conheço sobre
a gravura é da autoria de António Sebastião e Silva (CGST)[1].
Nunca foi feita uma abordagem analítica sistemática, sem dúvida por não se conhecerem outras representações urbanas suficientemente próximas ou com alçados comparáveis.
Nunca foi feita uma abordagem analítica sistemática, sem dúvida por não se conhecerem outras representações urbanas suficientemente próximas ou com alçados comparáveis.
Esta situação alterou-se
radicalmente com a revelação da planta de Leonardo de Ferrari (FERR) e do
"Borrão do alçado de Tavira" de José de Sande Vasconcelos (BAT),
ambas previamente desconhecidas pelos estudiosos da história urbana de Tavira.
Estudo analítico
Esse estudo analítico – de que
aqui se apresenta uma primeira versão – fica porém muito facilitado a partir
das referidas plantas e de um "modelo digital de terreno" do espaço
urbano actual.
A sua realização é um exercício didáctico elementar de geografia histórica urbana, cujo enunciado se pode estabelecer do seguinte modo:
A sua realização é um exercício didáctico elementar de geografia histórica urbana, cujo enunciado se pode estabelecer do seguinte modo:
- Identificação
prévia dos elementos da gravura que servem de marcadores de paisagem
- Determinação
do ponto de tirada da vista
- Ajustamento
e sobreposição da cartografia mais próxima no tempo à gravura
- Avaliação do
rigor topográfico da gravura
- Sistematização
dos elementos urbanísticos identificados
- Estimativa
de um intervalo de datação da gravura, a partir da datação de elementos já aí representados mas omissos em FERR, com base em fontes documentais e estudos
específicos
- Contribuições
específicas da gravura para o conhecimento da arquitectura e da forma urbana
Aqui tratarei apenas sumariamente
de alguns destes pontos.
Marcadores de
paisagem e pontos de tomada de vista
A figura seguinte mostra a selecção de marcadores de paisagem
(identificados segundo uma numeração arbitrária sistematicamente usada neste
estudo: ver lista mais adiante) e a sua implantação no espaço topográfico real.
A planta é de um modelo digital de terreno com uma resolução altimétrica de 1m.
Mostra também os alinhamentos dos marcadores da paisagem
percepcionados segundo a sequência visual e a profundidade visual da gravura, idealmente
convergentes para pontos únicos de tomada de vista, definidos pela sua
intersecção.
Planta e modelo digital de terreno da área urbana de Tavura, com marcadores de paisagem, alinhamentos e pontos de tomada de vista da gravura
O ponto de tomada de vista principal da gravura assim
definido (designado por A) situa-se num pontal planáltico sobreelevado sobre
todo o vale do Gilão, hoje situado a sul da Rua de Miraflores, junto ao
logradouro/largo da Rua Brigadeiro Eduardo José dos Santos. Este ponto de vista
define o plano de visão da gravura, paralelo ao eixo do rio.
Os alinhamentos e a sequência visual são quase perfeitos
e sistemáticos para todos os marcadores de paisagem seleccionados, com excepção
dos eixos da Rua da Porta Nova e da Carreira de S. Lázaro, que surgem
grandemente distorcidos no conjunto.
O alinhamento e sequência visual destes eixos
extemporâneos correspondem na realidade, não a um erro de desenho, mas sim a um
segundo ponto de tomada de vista (assinalado como B). A ponte surge como
charneira comum entre ambas as perspectivas.
Tudo indica assim que a gravura se obteve pela composição
de elementos de ambos os pontos de tomada de vista, com grande predominância do
primeiro.
Implantação e sobreposição da gravura na
planta de Ferrari
1 - Modelo
da planta original de Leonardo de Ferrari (c. 1555) cf. FERR.
2 - Modelo
da mesma planta rodada e perspectivada de modo a corresponder aproximadamente
ao ângulo de visão da gravura
3- Modelo
da mesma planta distorcida para se ajustar aproximadamente à gravura.
Erros
A gravura só é conhecida
através de uma litografia publicada em 1843, em época anterior à reprodução
fotográfica generalizada. Não é possível portanto saber-se se alguns erros de
omissão e simplificação são originais ou devidos a erros da cópia manual para a
matriz litográfica
A gravura apresenta sete erros
mais ou menos evidentes:
- A ermida da
Senhora do Loreto e as casas nobres que a incluem são omissas. As casas já são representadas em FERR (e a ermida já existe em 1573, aquando da visita de D. Sebastião à cidade) e o conjunto é destruídas apenas
em 1888. A sua omissão na gravura só se compreende por erro de desenho.
- A ponte tem
uma dimensão desproporcionada e está sobreelevada relativamente ao rio
- O castelo
tem uma altura desmesurada. Todo o andar superior abaluartado é imaginário
- As torres da
cerca da Graça e, sobretudo, o torreão manuelino da porta "nova" da
Bela Fria estão sobredimensionados, sobretudo em altura.
- A muralha
almóada entre o muro albarrã da Porta do Mar e a Porta da Vila não está representado,
sendo substituído por casas fantasiosas
- A qualidade
artística dos alpendres e arcada das casas da Câmara junto à Alfândega é má,
permitindo apenas adivinhar os arcos a quem saiba da sua existência por outras
fontes.
- Tendência
para a distorção "abaluartada" das paredes verticais: é o caso
manifestamente exagerado da ponte e do castelo e, em menor grau, da torre do
mar e da capela ameada da Igreja de Sant'Ana
Tudo o resto parece ser aceitavelmente
rigoroso dentro do esquematismo simplificado seguido, quer quanto às posições
relativas na paisagem quer quanto aos detalhes arquitectónicos dos edifícios
mais notáveis.
Sistematização dos elementos
arquitectónicos identificados
- Convento das Bernardas
- Igreja de S. Sebastião
- Convento de S. Francisco
- Castelo
- Igreja de Santa Maria
- Convento da Graça
- Torre Norte da Cerca da Graça (muralha medieval almóada)
- Igreja de S. Roque
- Casa de Vaz Velho
- Pelames
- Torre manuelina da porta da Bela Fria
- Barbacã manuelina
- Palácio da Galeria
- Torre e Porta do Mar
- Praça da Ribeira
- Alfândega: edifícios e terreiro
- Horta do Rei e Horta do Bispo
- Edifícios singulares
- Ponte
- Igreja de S. Lázaro
- Porta Nova
- Igreja da Sra. da Ajuda e Convento de S. Paulo
- Largo da Alagoa
- Igreja de Sant'Ana
- Rua Direita do Corpo Santo
- Rua do Sapal
- Estrada para Castro Marim (Carreira de S. Lázaro)
- Rua da Porta Nova
- Estrada do Cano para Faro
- Rua do Sapal de Sant'Ana. Caminho para Vale Formoso
- Rua do Alto do Cano e estrada de Loulé
- Rua da Praia da Ribeira (Porto de Tavira)
- Adro da Porta da Vila
- Largo/Terreiro da Corredouras
- Torre do canto Noroeste da cerca da Graça
Tipos de elementos
A Casas
conventuais
B Igrejas
e ermidas
C Fortificações
medievais: castelo e muralhas
D Portas e
cercas fiscais pós-medievais
F Casas
particulares notáveis
G Hortas e
campos agrícolas
H Largos e
Terreiros
I Edifícios de comércio e administração local
J Edifícios de manufacturas (curtumes)
K Eixos de arruamentos e limites de largos
K Eixos de arruamentos e limites de largos
O sobredimensionamento
O
sobredimensionamento referido atribui um estilo "maneirista" á gravura, em que o desenhador aumenta
selectivamente os principais símbolos urbanísticos de prestígio da povoação: a
ponte, que é o ex-libris da cidade, e
a fortificação medieval, cujo valor é porém meramente simbólico visto ser já
completamente anacrónica na época.
A ponte (Nº 19)
A gravura mostra a ponte antes da sua grande reconstrução
de 1655-57, que criou a estrutura que permanece até hoje nos seus traços
fundamentais (TST1, 300-1).
O grande gigante ou quebra-mar
central representado na gravura e em FERR, é interpretado por Sebastião e Silva
como tendo tido inicialmente um carácter fortificado (FPT, 141).
As "casas" que aí
existiram segundo Sarrão (em 1607: SARR, 166) terão tido uma existência efémera
pois ainda não existem em FERR e já não sobrevivem na gravura.
Na gravura, os talhamares bem
evidentes em FERR conseguem individualizar-se com alguma dificuldade. Os dois primeiros
arcos da margem esquerda não estão representados, tapados pela perspectiva do
casario. Correndo o risco de sobreinterpretar o desenho muito esquemático
parece que o 6º arco, mais próximo da margem pode ter sido sobreelevado,
possivelmente para permitir a passagem de barcas de maior calado.
Na reconstrução dos dois pilares
aluídos do lado sul (nº 4 e nº 5) o arquitecto decidiu também arrasar o antigo
gigante (nº 3), reconstruindo-o de novo e acrescentando mais um arco e um pilar
do lado Sul, diminuindo assim os respectivos vãos. Todos os novos pilares têm a
forma de castelejo, sendo o 3º ligeiramente maior – provavelmente com uma
dimensão semelhante ao original. É fácil distingui-los, comparando a ponte de
FERR com a planta da ponte actual.
Plantas da Ponte aproximadamente na mesma escala e orientação.
Em c. 1555 (FERR), c. 1798 (BAT) e na actualidade (Monumentos Nacionais)
Em c. 1555 (FERR), c. 1798 (BAT) e na actualidade (Monumentos Nacionais)
O castelo (Nº 4)
A representação do
castelo ultrapassa o simples exagero dimensional: acima do nível real das ameias (bem perceptível na
gravura e muito mais baixo do que as torres da Igreja de Santa Maria) o autor
inventa uma extensão abaluartada e ameada, em que duas das torres se
representam com telhados sobrepostos (um de quatro águas e um de duas águas!).
Alinhamento comparativo aproximado do Castelo e Igreja de Santa Maria.
Em c .1555 (FERR), na gravura e em c. 1798 (BAT)
Em c .1555 (FERR), na gravura e em c. 1798 (BAT)
Relação altimétrica real entre o Castelo e a Igreja de Santa Maria
A gravura, para além de uma base realista indiscutível, pretende difundir uma mensagem de poderio defensivo, tão simbólico quanto anacrónico. Porém, a própria realização da gravura e a invenção do castelo poderão corresponder a um projecto de reconstrução da fortaleza, no sentido de a tornar de novo eficaz no contexto militar da época.
Esta necessidade premente e
generalizada colocou-se, como se sabe, ao recém-restaurado Estado português
após 1640, o que permitiria datar a gravura logo a seguir à Restauração, isto
é, a partir de 1641.
Elementos urbanos
que surgem pela primeira vez na gravura
A gravura mostra uma série de elementos que ainda não
existiam na planta de Ferrari, sendo portanto posteriores a ela:
-
Nº 6: Edifícios
novos do convento da Graça, iniciados em 1569 e concluídos já no séc. XVII.
-
Nº 22: Convento de
S. Paulo, concluído c. 1605.
- Nº 5: Torre
sineira da igreja de Santa Maria (a da esquerda na gravura), de data por mim desconhecida. Fica por
esclarecer em que medida esta data poderá contribuir para avançar o limite post quem do intervalo de datação da
gravura.
-
Nº 21: Porta Nova,
provavelmente coeva da porta do Malforo, já existente em 1573.
· - Nº 13: Fachada
nobre do Palácio da Galeria, já existente em 1635[2].
As casas de Câmara (Nº 16)
A representação das "casas da Câmara", arcada e
alpendres junto à Alfândega revela a ausência de telhados sobre os referidos
alpendres, assim como a ausência de um piso superior.
A casa do lado do rio – dos antigos açougues – parece estar também parcialmente destelhada.
Como já disse, os arcos não são explícitos para quem não conheça a sua existência, o que constitui uma dos pontos fracos do desenho.
A casa do lado do rio – dos antigos açougues – parece estar também parcialmente destelhada.
Como já disse, os arcos não são explícitos para quem não conheça a sua existência, o que constitui uma dos pontos fracos do desenho.
Tendo em conta a fidelidade geral dos detalhes nos demais
edifícios notáveis, é difícil aceitar que o "destelhamento" seja um
erro do desenho (embora tal seja obviamente possível, pois o desenhador
"esqueceu-se" das casas do Loreto!).
A alternativa mais
provável é tratar-se de facto de uma representação fidedigna, de uma fase de obras
notórias de reparação/reconstrução dos edifícios.
Tal permitiria datá-las numa data imediatamente anterior a 1645, altura em que as casas sobre os alpendres (já com piso superior) são usadas como aposentadoria do Corregedor, sendo essa a razão mais plausível para a realização das obras.
Tal permitiria datá-las numa data imediatamente anterior a 1645, altura em que as casas sobre os alpendres (já com piso superior) são usadas como aposentadoria do Corregedor, sendo essa a razão mais plausível para a realização das obras.
Datação
Em conclusão, a datação mais provável da gravura é, em
graus crescentes de precisão mas também de incerteza:
- Primeira
metade do século XVII
- Entre 1605 e
1645, sempre antes de 1657.
- O intervalo
pode ser encurtado tentativamente para 1641-45, considerando o que acima foi
dito sobre o eventual projecto de modernização da fortaleza posterior à
Restauração portuguesa.
Elementos
arquitectónicos inéditos
- Abside
ameado da igreja de Sant'Ana (Nº 24)
- Casa de Vaz
Velho (Nº 9).
- Edifícios
singulares junto ao porto (Nº 18), ainda inexistentes em c. 1555 (FERR) e já
omissos em c. 1797 (BAT).
Comparação muda de elementos urbanísticos seleccionados
Comparação gráfica de elementos urbanos da gravura com as respectivas plantas e alçados nas cartas de Leonardo de Ferrari (c. 1555) e Sande de Vasconcelos (c. 1798). A explicação e a sinalização das alterações relevantes, decorrentes da evolução histórica dos locais, serão incluídas numa versão posterior.
Em c .1555 (FERR), na gravura e em c. 1798 (BAT)
Em c .1555 (FERR), na gravura e em c. 1798 (BAT)
Conventos das Bernardas (Nº 1)
Igreja de Sant´Ana (Nº 24)
Porta e Torre do Mar (Nº 14) e Adro da Porta da Vila (Nº 33)
Torre da Porta "Nova" da Bela Fria (Nº 11) e torres da cerca da Graça (Nº 7 e Nº 35)
Bibliografia
ACA Catarina Almeida Marado, Antigos Conventos do Algarve. Um percurso
pelo património da Região, Colibri, Lisboa, 2006
BAT José Sande de Vasconcelos: ver neste
blog Alçado da Planta de Tavira. Finais séc. XVIII http://imprompto.blogspot.pt/2010/01/alcado-da-planta-de-tavira-finais-sec.html
CGST António Sebastião e Silva, "
Considerações sobre a gravura seiscentista de Tavira" in Tavira do Neolítico ao Século XX. Actas das
II Jornadas de História, Clube de Tavira, Tavira, 1993; pp. 135-143.
CNSG Daniel Santana, "O convento de Nossa
Senhora da Graça de Tavira", Monnumentos,
14, D.G.E.M.N., Lisboa, 2001, 124-133.
CRA Frei João de São José, "Corografia
do Reino do Algarve", 1577, in DDA21-132.
DDA Manuel Viegas Guerreiro e Joaquim Romero
Magalhães (Edição, estudo e notas), Duas
descrições do Algarve do Século XVI, Sá de Costa, Cadernos da Revista de
História Económica e Social, 3, Lisboa, 1983
FERR Leonardo de Ferrari: ver neste blog Uma
planta inédita de Tavira, do séc. XVI http://imprompto.blogspot.pt/2008/04/uma-planta-indita-de-tavira-do-sc-xvi.html
FPT António Sebastião e Silva, "As
Fortificações Pós-Medievais em Tavira", in Actas das III Jornadas de História, Clube de Tavira, Tavira, 1997;
pp. 207.
HRA Henriques Fernandes Sarrão,
"História do Reino do Algarve", 1607, in DDA, 133-170.
JAA João Cascão, (Ed., estudo e notas de
Francisco de Sales Loureiro), Uma Jornada
ao Alentejo e ao Algarve (1573), Livros Horizonte, Lisboa, 1984.
NHT Damião A. de Brito Vasconcelos, Notícias Históricas de Tavira. 1242/1840,
(Notas de Arnaldo Casimiro Anica), Câmara Municipal, Tavira, 1989 (1937).
NNHT Arnaldo Casimiro Anica, Notas in NHT, 1989
TST1 Arnaldo Casimiro Anica, Tavira e o seu Termo. Memorando Histórico,
Câmara Municipal, Tavira, 1993
TST2 Arnaldo Casimiro Anica, Tavira e o seu Termo. Memorando Histórico.
Volume II, Câmara Municipal, Tavira, 2001
[1] Estudo inovador na
altura, quando a historiografia do urbanismo tavirense tinha ainda um carácter
notoriamente pré-científico, com opiniões que o autor rebate justamente, caso a
caso. Muitas das suas ilações, assim como a sua aceitação literal das
representações, já não podem porém ser aceites hoje.
[2] TST1, p. 286: Data de
1635 a doação das "casas da Calçada que vai de Santa Maria para a Fonte, à
mão esquerda" pela viúva de Luis de Aragão de Sousa ao seu filho.