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Monday, May 08, 2006

O papiro de Artemidoro de Éfeso

Parte do manuscrito de Artemidoro, relativa à Península Ibérica

Le tre vite del Papiro di Artemidoro
Voci e sguardi dall'Egitto greco-romano
org. Claudio Gallazzi e Salvatore Settis
cat. exposição Palazzo Bricherasio; 8 fev-7 mai 2006; Torino
Electa, Milano 2006
p. 157

Tradução do italiano, não corrigida pela consulta da versão crítica (il Papiro de Artemidoro, C. Gallazzi, B. Kramer, S. Settis e G. Adornato, Milano LED 2006)

A versão do catálogo peca sobretudo pela tradução dos topónimos e corónimos, o que retira à obra uma importantíssima informação linguística e geográfica. Ainda por cima o critério de tradução não é consistente, umas vezes mantém formas do original grego (Gadeira), outras não (Ebro), outras ainda indesculpavelmente anacrónicas (Espanha). A revisão do texto também não é muito cuidada (Alacer por Alcácer, Gorbera por Gorbea...).

Mais graves são os erros de ignorância e preguiça bibliográfica. É o caso de Maria Patrizia Gulletta, que escreve sobre a Península Ibérica, (pp. 88 a 109), ao afirmar que Ipsa e Cilibe são apenas conhecidos pelas suas cunhagens monetárias, que a Lusitânia corresponde ao Portugal actual (por duas vezes), que Onuba Aestuaria se situa "na vizinhança" da moderna Huelva e continuando a confundir o Promontório Sacro com o Promontório Cuneo! (p. 91).

Enfim, após estes desabafos, eis o famoso texto, que terá sido escrito entre 106 e 102 a.C.

[Nota: A separação de linhas e a numeração não existe no texto original, sendo da minha responsabilidade. Destina-se a estruturar a informação e facilitar o seu comentário. O texto entre [] é meu.]




01. Partindo dos Pirenéus até à zona de Gadeira, incluindo as áreas mais interiores, todo o território é chamado indiferentemente, ou Ibéria ou Hispania.

02. Este território está dividido pelos Romanos em duas províncias:

03. A primeira [Citerior] compreende toda a região que vai dos Pirenéus a Carthago Nova, a Castulo e às nascentes do Baetis.

04. A segunda [Ulterior] compreende, por sua vez, as terras até Gadeira e a totalidade da Lusitânia.

05. O contorno completo do território, é o seguinte:

06. Os Pirinéus dividem a Gália e a Ibéria.

07. Uma das suas duas extremidades, voltada a Sul, estende-se até ao Mare Nostro [Mediterrâneo];

08. a outra extremidade, voltada para o Setentrião, avança sobre o Oceano.

09. Quanto às suas vertentes, uma está voltada para Oriente e dela se avista um sector bastante amplo da Gália;

10. a outra, por sua vez, está voltada para Ocidente e dela se vê uma parcela correspondente da Ibéria.

11. Com isto estabelecido é necessário pensar nos outros três lados que delimitam a Ibéria.

12. Um dos lados vai dos Pirenéus a Gadeira: é o que se estende ao longo do Mare Nostro [Mediterrâneo], isto é, o mar no interior das Colunas de Hércules, e que é paralelo às terras voltadas a Sul.

13. O segundo lado, que se banha nas águas do Oceano e que se orienta a Norte, estende-se para Oeste e junta-se ao

14. terceiro lado, que está a Ocidente, onde se situam a Lusitânia, o supracitado Promontório Sacro e a inteira região de Gadeira.

15. Naqueles sectores que são limítrofes aos Pirenéus, uma parte da Ibéria prolonga-se para Oriente e delineia parte de um golfo de amplitude considerável, que se desenvolve no extremo dos supracitados montes; este golfo une-se com o Golfo Gálico.

16. Tal é a forma completa de Ibéria.

17. Reassumiremos agora o trajecto por mar ao longo da sua costa, de modo a permitir adquirir um conhecimento geral das distâncias que separam as várias localidades.

18. Do promontório de Afrodite Pirenaica até à cidade de Emporion, colónia dos focenses, [são] 332 estádios [stadia. Um stadium mede cerca de 185 m].

19. Desta à cidade de Tarrakon, 1808 [estádios].

20. De ali ao rio Ebro, menos de 92.

21. Deste ao rio Sukron, 1048.

22. De ali a Carthago Nova, 1240.

23. De Carthago ao monte Calpe, 2020.

24. Deste a Gadeira, 544.

25. No total, dos Pirenéus e do Aphrodision até Gadeira são 7084 estádios.

26. De Gadeira à torre e porto de Menesteo, em conjunto, são 7170 estádios.

27. Destes até à segunda foz do rio de Asta, 120 [estádios].

28. Desta até ao rio Baetis, 684.

29. Deste até Onoba, 280.

30. De ali a Mainoba...

31. Desta até à cidade de Ipsa, 24.

32. Desta até ao estuário do Anas, em linha recta até ao ponto em que se situa a cidade de Cilibe, 70 estádios.

33. Depois da foz do Anas vem a extremidade do Promontório Sacro; até à [sua] ponta são 992 estádios.

34. Dobrado o promontório, até à torre e porto de Salacia, 1200 estádios.

35. E dali até à foz do rio Tagus, 320.

36. Desta ao rio Durio, 1300.

37. Depois deste, a 180 estádios, fica o rio Oblivio, que é também chamado Lethe e Limia.

38. Depois deste, até ao Benis ou Minion, 110.

39. Deste até ao Promontório dos Artabri, menos de ...

40. Deste a Megas Limen, cerca de 98.

41. Da parte restante da costa ainda ninguém fez o reconhecimento.


Mapa do Périplo Ibérico de Artemidoro


Alguns comentários rápidos.

  • Os numerais são, em princípio, suspeitos e alguns poderão corresponder a erros tipográficos do catálogo. Seria importante comparar os valores com os da edição científica.

  • Certas números (com erros de uma ordem de grandeza, isto é, cerca de 10 vezes maiores ou menores) são claramente erros de transcrição. É o caso evidente das linhas 26 e 31. Os restantes valores são mais aceitáveis, embora o total da linha 25 (7084 stadia) não corresponda à adição das parcelas das linhas 18 a 24 (que dá 6540).

  • Gadeira (linhas 24 e 26) pode corresponder talvez ao Herakleion e não à cidade. Os 7170 stadia da linha 26 são um erro óbvio. Se a Torre de Menesteo foi o Castillo de D. Blanca e a segunda foz do rio de Asta (linha 27) a Enseada da Punta de Huete então as medidas das linhas 27 e 28 ajustam-se razoavelmente.

  • As linhas 30-32 estão intercaladas

  • A linha 30 é um mistério pois dificilmente seguirá após a linha 22, onde geograficamente deveria estar. A sequência Onoba > Mainoba faz lembrar Estrabão III,2,5.

  • As linhas 31-32 correspondem aparentemente a uma descrição da costa do Algarve no sentido oposto, de Ocidente para Oriente.

  • Se na linha 31 a distância fosse 240 em vez de 24, seria a distância real do Promontório Sacro a Ipses.

  • Os 70 stadia da linha 32 correspondem à realidade, da distância marítima entre as fozes da ria de Alvor e do Rio Arade. O fraseado da linha mostra que Cilibe se situa afastada da costa, o que corresponde à localização do povoado da Rocha Branca, no fundo Norte do estuário do Arade.

  • Falta uma linha após 29, a indicar a distância de Onoba ao Anas

  • A linha 34 parece corresponder exactamente a uma parte perdida do texto de Estrabão, a intercalar antes de III,3,1:

    "Agora, se começarmos de novo no Promontório Sacro, seguindo a costa na outra direcção, nomeadamente, para o Rio Tagus, há primeiro um golfo e depois um promontório, Barbarium, e perto dele, as bocas do Tagus; e a distância até estas bocas em linha recta é 10 stadia. Aqui, também há estuários; um deles estende-se para o interior desde a supramencionada torre, durante mais de 400 stadia, e ao longo deste estuário o território é banhado até Salacia."
    (Tradução da versão de H. L. Jones: Harvard University Press, 1917 thru 1932 (Loeb), minimalista, que não procura recriar partes desaparecidas do original.)

    Comentários sobre o texto de Estrabão:

    É de notar que Estrabão considera o Sado um estuário e não um rio, até Salacia.
    Na foz do Sado refere-se uma torre, que corresponderá à explicitamente identificada por Artemidoro como Torre de Salacia, na linha 34.
    Esta torre terá sido um farol, de modo semelhante à Torre de Cipião, descrita em III, 1, 9 (Kaipiónos pyrgos, ou seja *Caepionis Turris, hoje Chipiona). Localizar-se-ia ou na então ilha de Tróia (entre os estuários do Sado e o da Comporta, correspondendo ao plural do número de estuários em Estrabão) ou na escarpa sul da Serra da Arrábida, ou no próprio Cabo Espichel. ( o promontório Barbarum).
    O estuário do Sado, entre Tróia e Setúbal é assim considerado por Artemidoro o porto marítimo de Salacia.

    A distância entre as fozes do Tejo e do Sado variam imenso entre Artemidoro (320 stadia) e Estrabão (10 stadia), sendo a primeira muito mais próxima da realidade (67 km= 360 stadia).
    A extensão do estuário do Sado, ou seja, da parte navegável do rio, é indicada por Estrabão como sendo de 400 stadia, o que é uma boa aproximação da realidade (cerca de ??? stadia da Foz a Alcácer do Sal).
    As bocas do Tejo, no plural, corresponderão provavelmente aos braços de rio em torno do banco de areia da Cabeça Seca (hoje submerso com excepção do forte -farol do Saõ Lourenço do Bugio).

2 comments:

  1. Now that many scholars consider this papyrus a forgery, what do you think of all these "strange mistakes" in giving the positions of the spanish cities and places and the distances that separate them? As for this, I think that the most interesting mistake is in line 31: perhaps who created this "thing" misunderstood a number written in arabic numerals, 240, trivializing it into 24. This is impossible to happen in ancient greek! 24 is written as kappa-delta, 240 as sigma-my! These two numbers are absolutely different in handwriting; it seems to be a "conceptual mistake", but in this case we should suppose that who wrote the papyrus translated into greek (a very bad greek) a text written in another language, where there were arabic numerals...
    What do you think about it? Thank you of your answer!
    A young scholar.

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  2. Thank you for your interesting comment.

    It is beyond me to give any opinion about the authenticity of the manuscript.

    About the sources of Arthemidorus it must be noted that he was personally in Iberia by 105 b.C., joining undoubtly some Roman military mission.

    I cannot presume which were his geographic sources in the Mediterranean coast, but in the Southwest they surely were Roman.

    The old Gaditan harbours of Ipses and Salacia were having, for the first time, effective naval-military occupation, after the end of the great Lusitanian Wars.
    They were essential for the Roman control of the Tagus stuary and access to mid-Lusitania from the naval headquarter in Gades.

    So, he surely translated the naval distances from Latin to Greek, at least in this area. The mistake of line 31 might very well originate then, or even before, in a previous Latin copy. We cannot therefore relate the mistake with an eventual forgery.

    (About Ipses and these subjects you may see http://imprompto.blogspot.com/2005/11/ipses.html and the pdf poster about Ipses linked there, a resume of a study I still had no opportunity to publish).

    Greetings

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