It takes a great deal of History to produce a little History

Monday, June 21, 2010

SÉRIES TEMPORAIS DE BALSA


Da classificação de materiais arqueológicos à conjuntura socioeconómica do passado romano

Elementos da comunicação apresentada ao 7º Encontro de Arqueologia do Algarve (Silves, 22-24 Outubro 2009) e a publicar na revista Xelb nº 10, em Outubro de 2010.

RESUMO

Apresentação de uma metodologia de transformação de quantificações comuns de cerâmicas e vidros romanos em modelos econométricos de séries temporais, integráveis nos referenciais analíticos das ciências sociais históricas.
As quantificações de formas datáveis de materiais são transformadas em distribuições de probabilidade temporal de data de fabrico, que são consolidadas em distribuições dos tipos respectivos. As séries temporais obtidas são modelizadas e submetidas a procedimentos comuns de análise estatística, econométrica e espacial.
Conceptualização, concretização e exemplificação, com dois casos de estudo da cidade romana de Balsa (Luz, Tavira, Faro): sigillatas de três sectores urbanos; e cerâmicas e vidros de uma das necrópoles.
Reconstituição da evolução demográfica histórica e das conjunturas sociais mais marcantes de Balsa, a partir das séries temporais e de outra informação correlacionada.

ABSTRACT

From the formal typology of archaeological pottery to the socioeconomics of the Roman past.
A methodology to transform standard Roman pottery quantifications into econometric models of time-series, integrable in Historical Social Sciences frameworks.
Quantifications of datable pottery forms are converted into temporal probability distributions of date of fabrication, consolidated by their respective types. The obtained time-series are modelized and subjected to standard statistics, econometric and spatial analysis.
Conceptualization, implementation and exemplification, with two case studies from the Roman town of Balsa, in Southern Lusitania (Luz, Tavira, Algarve, Portugal): sigillatas from three urban sectors; and pottery and glasses from a local necropolis.
Reconstitution of historical demographic evolution and outstanding social conjunctures of Balsa from the time series and other correlated information.

VERSÃO INTEGRAL


Introdução

Existe uma enorme distância conceptual entre os resultados produzidos pelos tipologistas de materiais arqueológicos e os elementos de informação procurados nos estudos de história socioeconómica da Antiguidade.
No caso das cerâmicas e vidros romanos, materiais extremamente difundidos, muito estandardizados e fisicamente resistentes (e por isso largamente representados na grande maioria dos sítios arqueológicos da época), os milhares de trabalhos locais e regionais de compilação, tipificação e quantificação permanecem virtualmente inacessíveis e ilegíveis pelos historiadores económicos, incapazes de usar a tremenda riqueza informativa desses estudos.
Não há, de facto, nenhuma maneira directa de ligar as listas infindáveis de descrições de materiais ou as "quantificações" simplórias dos tipologistas com as necessidades de generalização e síntese pretendidas pelas ciências sociais históricas e, muito menos, pelos historiadores da Antiguidade.
Não é nada seguro que algum dia venha a existir uma solução global para o problema e o ónus cai em parte sobre os arqueólogos: enquanto houver abundância de novos sítios e vestígios romanos importantes, é pouco provável que se venham a interessar seriamente pela informação residual de quantidades infindas de fragmentos insignificantes.
Isso para não referir o handicap – do ponto de vista de uma analista de informaçãoda deficiente qualidade do registo arqueológico. É o caso de regiões como o Algarve, em que a maioria do registo físico desapareceu ou não foi sistematicamente recolhido, e em que ainda se contam pelos dedos as colecções de sítios romanos publicadas com critérios quantitativos. O conhecimento arqueológico da maioria dos lugares é, sobretudo, baseado ainda em informações oitocentistas ou em classificações tipológicas apressadas, sem possibilidade de avaliação quantitativa posterior.

Séries temporais de probabilidade de fabrico

A transformação da informação de datações de materiais (obtidas nas respectivas tipologias) em séries temporais contínuas de probabilidades de fabrico baseia-se nos raciocínios estatísticos seguintes:

Qualquer objecto classificado num tipo datável através de um intervalo de datação tem uma data de fabrico definida probabilisticamente nesse intervalo, segundo a função de densidade de probabilidade de fabrico do tipo.

Essa função pode ser definida empiricamente através de: assunção de um modelo não enviesado de distribuição de probabilidade genérica a todos os tipos; e parâmetros específicos da extensão e da indeterminação do intervalo de datação de cada tipo do objecto.

Quanto mais limitado for o intervalo de datação maior será a precisão da datação, pelo que se devem procurar maximizar o número de tipos datáveis mais elementares, com intervalos de datação mais curtos.

Considera-se que a função de distribuição de probabilidade temporal de uma série de elementos é uma proxi da distribuição de frequência temporal real desses elementos. Este indicador mantém todo o conteúdo informativo do processo de classificação e permite associar ao estudo de materiais arqueológicos todo um novo universo de métodos e conceitos analíticos.

Assume-se que a distribuição de probabilidade temporal de fabrico de um agregado de tipos datáveis de materiais P(t) é uma aproximação linear da distribuição de frequência real de fabrico dos elementos desse agregado F(t), em amostras não enviesadas e em distribuições de probabilidade não distorcidas por artefactos de cálculo:
F(t)= k x P(t) + ε
Em que k é um factor desconhecido e ε um erro com uma distribuição estimável. Na realidade tem-se apenas P'(t) ≈ P(t), uma aproximação não corrigida dos factores de enviesamento e distorção.

Este salto conceptual permite, na prática, o uso da informação arqueológica por analistas quantitativos de séries temporais, integrados nos domínios das ciências sociais, com destaque para a economia (econometria), geografia humana (análise espacial) e a demografia.

Numa série ideal em que a datação dos elementos fosse conhecida, a construção da respectiva série cronológica seria a distribuição da frequência do número de elementos em cada unidade da resolução temporal.

Infelizmente, no mundo real a datação dos elementos é imperfeitamente conhecida. A precisão de datação pode definir-se apenas como a probabilidade média de acerto na data de produção. Essa probabilidade é inversa à duração temporal de produção. Por outras palavras, quanto mais longo for o período de produção de um tipo de objectos, mais imprecisa será a sua datação.

Para obter a distribuição de objectos de datação incerta devem-se considerar duas fases:
  1. Converter o período de produção (definido na linguagem vulgar de datação) de cada tipo datável de materiais numa distribuição de probabilidade.
  2. Consolidar numa distribuição total comum as distribuições de probabilidade obtidas, em que cada distribuição parcial concorre proporcionalmente com o número de elementos do seu tipo.
Os maiores óbices à utilização de distribuição de probabilidade são:
- A introdução de parâmetros subjectivos: funções de densidade de probabilidade de fabrico baseadas em estimativas, na ausência de estudos históricos especializados; e parâmetros arbitrários de quantificação da incerteza de datação. A aferição mais rigorosa destes últimos exigiria uma análise das decisões implícitas ou das normas usadas pelos tipologistas de materiais na definição de datações incertas ou desconhecidas;

- O grau de significância estatística depende da dimensão das amostras de materiais. Idealmente, todo o período de duração deveria estar uniformemente bem representado, com um número elevado de elementos, o que na prática raramente se verifica.


A distribuição mais simples é a rectangular, em que a probabilidade é constante dentro do seu domínio (que no nosso caso é a época de produção). Nesta distribuição, dado um tipo de fabrico com a duração de T anos, a probabilidade de um dado objecto desse tipo ser fabricado num dado ano é de 1/T.

Considera-se a função trapezoidal generalizada (Van Dorp, J. R., & Kotz, S., 2003) como um modelo matemático mais rigoroso da distribuição de probabilidade temporal da produção de objectos de cerâmica e vidro durante o período de feitura do seu tipo. 
É um modelo adequado à estimação subjectiva de parâmetros da evolução temporal de centros de fabrico antigos, cujas produções das fases inicial e final aumentam e terminam de forma não abrupta, com uma variação paulatina. 
Este tipo de funções adapta-se também à datação do fabrico de objectos em zonas de consumo remoto. A probabilidade de um objecto pertencer à fase de expansão inicial de difusão ou à fase final de regressão é menor do que durante o período de apogeu do abastecimento local.

Usa-se um caso particular desta família de funções, a função trapezoidal triangular, o que reduz grandemente a complexidade do cálculo, sem perder precisão útil.
A tabela 1 apresenta a sua forma e parâmetros analíticos.
Neste modelo, o período de produção divide-se normalmente em três partes, de modo análogo às notas musicais:
O valor P(t) é a probabilidade de um objecto ser fabricado num dado ano t. Tem um valor máximo na época de apogeu, correspondente à sustentação.


Datação

As disciplinas históricas partilham uma linguagem de datação semi-quantitativa, que é um subconjunto especializado da linguagem natural (no nosso caso, da língua portuguesa). O aspecto mais inovador do método consiste no uso dessa linguagem, de modo a converter "directamente" as respectivas datações em distribuições de densidade de probabilidade.

Gramática formal da linguagem de expressões temporais

O domínio sintáctico das expressões comuns dessa linguagem de datação pôde definir-se como uma linguagem formal, a partir da qual foi possível estabelecer uma gramática generativa. Esta gramática permite desenhar e construir analisadores sintácticos e processadores de expressões, capazes de converter automaticamente expressões temporais válidas em distribuições temporais contínuas de probabilidade.

A linguagem foi desenvolvida a partir da compilação exaustiva das expressões de datação de materiais romanos de Balsa, usadas por Nolen e Viegas. Nela, os termos da língua vulgar são transformados em mnemónicas e a sintaxe em símbolos, por razões de economia de expressão e para simplificar, tanto quanto possível, a programação informática do analisador sintáctico.

1º CASO DE ESTUDO: Sigillatas de Três Sectores de Balsa

A exploração de 1977

Corresponde à primeira e única intervenção arqueológica de âmbito científico e profissional realizada em Balsa. Resumiu-se a uma só campanha e não teve continuidade por razões alheias à equipa responsável. O historial dos relatórios de escavação e dos materiais resultantes desta intervenção não é relevante para este trabalho. Interessa apenas saber aqui que uma parte deles (as sigillatas) foram estudados e publicados por Catarina Viegas em 1996.

Séries de probabilidade de datação de fabrico das sigillatas consumidas em três sectores de Balsa


Análise da conjuntura histórica do consumo de sigillatas

A intensidade – brutal em termos históricos – do consumo de TSSG é o facto mais relevante da análise de dados, segundo se depreende do gráfico 2.1.

A partir deste fenómeno, podem definir-se quatro épocas de tendência quanto ao consumo de sigillatas, bem visíveis no gráfico 2.2:

Até 70-80 Crescimento de alta intensidade, influenciado pelo crescimento da cidade e pelo "boom" da TSSG.
80 a 150 Decréscimo até à "normalidade" histórica do consumo.
150 a 510 Época longa de consumo estático, de baixa intensidade.
510 a 610 Declínio pós-romano.

Sobre estas tendências visualiza-se um fenómeno notável de variação periódica diferencial, de características aditivas, com um semi-período aparente de 20-30 anos.

Esta oscilação minimamente regular distingue-se bem de duas fases de conjuntura histórica depressiva do consumo, que podem ambas dever-se a causas imediatas des crises socioeconómicas regionais: a época da "crise Antonina" e da dinastia Severiana (c. 170-230); e a época das grandes invasões, até meados do séc. V (c. 410-450). É de notar que, segundo os dados, não se verifica perturbação do consumo "normal" de sigillatas durante o período agudo da crise político-militar do séc. III.

O gráfico 2.5 representa, nos seus traços principais, outro aspecto fundamental do estudo das sigillatas de Balsa: o historial da estrutura do fornecimento. Nele observam-se quatro ciclos de substituição de fornecedores e respectivos produtos:
 
TSII+TSHP por TSSG+TSHP+TSH: com inflexão em 40.
TSSG+TSHP+TSH por TSCA: com inflexão em 140.
TSCA por TSCC: com inflexão em 230.
TSCC por TSCD+TSLUZ: com inflexão em 330.

Verifica-se assim uma extraordinária regularidade histórica das substituições de fornecimentos de sigillata, com um período exacto de cem anos!

As curvas tendenciais de substituição de fornecimentos/categorias ajustam-se impressionantemente bem a um modelo de difusão de inovação de tipo logístico, com as seguintes discrepâncias de nota:

A função não tem um domínio simétrico. O troço de expansão é consideravelmente mais curto do que o de saturação e este é virtualmente assimptótico.
Observa-se aqui também um fenómeno de oscilação cíclica relativamente à tendência logística, o que sugere uma variação periódica de alteração da composição da oferta, que poderá estar associada à variação da intensidade de consumo (ver nota 27).

O período inicial, desde 31 a.n.e. é preenchido pela oferta maioritária (75-70%) de TSII e minoritária (25-30%) de TSHP.

O hiato de TSHP de 21 a.n.e. a 1 n.e. dever-se-á à pequenez da amostra. Este tipo apresenta-se em ascensão até c. 30.

Em 30-40 a TSSG inunda o local numa subida relâmpago sem paralelo e obtém uma supremacia quase total, até 70. Corresponde à época da sua intensidade máxima, já referida.

O crescimento exponencial da TSSG para o domínio do mercado alcança a inflexão em 40, mas a partir de 50 o seu ímpeto de crescimento estanca, e as TSHP e TSH surgem claramente como os produtos de substituição complementar.

A TSH, introduzida em 40, cresce sempre, primeiro à custa da TSHP e TSII e, a partir de 70, também da TSSG, até representar metade do volume em 140.

Esta é uma década nodal, em que a TSSG desaparece e a TSH alcança o seu máximo e partilha o mercado com a TSCA. A partir daqui é substituída rapidamente por esta até desaparecer em c. 180.

A TSCA, 100 anos depois da TSSG, conquista o mercado através de uma expansão desde 90 a 140, ponto de inflexão neste ano e saturação em c. 180.

A TSCC tem um comportamento idêntico à TSCA, com um desfasamento de 100 anos. Desde 180 sobe até alcançar a inflexão em 230 e tem a supremacia quase absoluta do mercado desde 280.

A TSCD tem um comportamento tendencialmente idêntico, com início em c. 290 e inflexão em 330. Porém não alcança o domínio absoluto do mercado graças aos tipos tardios minoritários (TSLUZ, DSP e TSFOC). 
Além disso a sua saturação tem uma importante descontinuidade entre c. 320-410, em que o seu crescimento se interrompe, mantendo-se o consumo de TSCC para além do que seria logisticamente a sua época (com 30% do mercado). De facto, a TSCC só diminui drasticamente a partir de 410.

O abastecimento dos tipos minoritários tardios mantém um peso de tendência constante ou muito ligeiramente ascendente, com várias oscilações com um semi-ciclo de período variável entre 25 e 40 anos (média c. 30 anos). Após atingir o seu peso máximo histórico em 560-570, cai abruptamente e extingue-se na década seguinte.
A TSCD permanece isolada até c. 650, como último tipo "romano" remanescente.
 

Análise sectorial do consumo de sigillatas


Os gráficos 3.C apresentam uma forma muito rudimentar de indicador utilizado neste tipo de análise. Referem-se apenas como exemplo, dadas as contingências da obtenção das séries sectoriais e dada a ausência de calibração externa do valor de "consumo médio" de sigillatas nos sectores.

Neste exemplo consideram-se as sigillatas como expressões materiais (isto é, como indicador específico) de dois tipos de actividades:

I. Serviços pessoais consumidores de louça de mesa semi-fina, em contextos habitacionais ou em estabelecimentos de prestação profissional de serviços.
II. Concentração associável ao comércio destas louças, em entrepostos de importação-exportação e/ou de venda.

Considerando como hipótese que a média esteja calibrada em zero (isto é, que uma densidade igual à média corresponde a um uso nulo de sigillata no local), o esboço do historial destas actividades nos três sectores poder-se-ia estabelecer a partir de um escalonamento semi-quantitativo das variações relativas à média, representadas nos gráficos 3.C.
Por exemplo:

< 10 "Ruído" material. Usos marginais e deposições posteriores.
>= 15-20 Actividade de tipo I
>= 40 Actividade de tipo II
S1 - Balneário
O consumo de sigillatas não é um indicador específico da actividade de banhos públicos, porém esse consumo é frequente nesses establecimentos, revelando aí a presença habitual de serviços de alimentação e bebida.

No caso do sector 1 o desvio é residual no período de 40 e 105. É possível que o balneário tenha a sua origem numa data próxima do limite inicial e que os serviços alimentares tenham sido raros nesta fase.

A actividade alimentar do balneário cresce entre 105 e 165 e mantém um planalto de apogeu até 235. Penso que este período corresponde também ao apogeu da actividade de banhos e, provavelmente, à maior expansão do edifício, registado na planta de Estácio da Veiga e por mim interpretado (Fraga da Silva, 2007: 55-6).

Verifica-se depois uma queda brusca entre 235 e 250, época final da dinastia Severiana. O estabelecimento parece ter entrado em declínio rápido na 2ª metade do séc. III e pode estar já abandonado em 300. 
Este declínio pode ser um indício do declínio geral da cidade durante a crise do séc. III, indiciado por outros elementos, nomeadamente o achado de um tesouro de anéis e moedas de Cláudio II no próprio esgoto do balneário, num local próximo da área explorada em 1977 (Fraga da Silva, 1997: 55).

S2- Fábrica de salgas
O indicador de consumo de sigillatas também não é apropriado para definir a actividade industrial de salgas. O seu registo pode porém referir-se: ou a zonas habitacionais das redondezas (incluindo da habitação do proprietário/administrador); ou à presença de um entreposto de importação grossista, associada aos fretes de retorno das ânforas conserveiras com as produções locais.

Neste sentido, é impossível determinar pela série o início da laboração da fábrica mas é possível atribuir à época Severiana (200 a 245) o início do seu possível funcionamento como entreposto comercial, actividade de manterá até ao seu abandono definitivo, quiçá em meados do séc. VII.

S3 - Casa/armazém
A densidade enorme de sigillatas neste local desde o início do registo (31 a.n.e.) sugere fortemente uma função precoce e especializada como armazém de importações grossistas e/ou de comércio local de louças importadas. Esta actividade mantém-se até c. 40, diminuindo então o seu peso subitamente para metade. 
Esta descontinuidade poderá dever-se talvez a uma crise comercial irreversível ou a uma catástrofe local, nomeadamente ao sismo na época de Cláudio, de que há registo noutros locais do Golfo de Cádis.

O consumo de sigillatas prossegue porém com menos intensidade até c. 90, declinando depois rapidamente até desaparecer em c. 140. Este nível menor de poderá associar-se a uso habitacional. Algures entre estas datas o local terá sido abandonado, o que se confirma pelo relatório oral da escavação do sítio em 1977. 
O edifício foi usado como entulheira, nomeadamente de cascas de berbigão, sendo certamente a parte mais tardia dos materiais provenientes de deposições secundárias.
 

2º CASO DE ESTUDO. Cerâmicas e Vidros da Necrópole Norte de Balsa

200 objectos correspondentes ao espólio musealizado da exploração da necrópole norte de Balsa (Torre d'Aires) por Estácio da Veiga em 1887.
Apesar das sérias e numerosas contingências que limitam o seu quadro interpretativo, este caso de estudo afigura-se de importância transcendental para o conhecimento da história socioeconómica de Balsa, devido à sua singularidade e carácter específico, revelando a variação de espólios funerários significativos ao longo de quase 500 anos.

Síntese sobre a evolução da série temporal

Até 60-70 a necrópole Norte terá sido a única ou a principal da povoação. Neste período a evolução da necrópole deve reflectir assim a evolução da conjuntura demográfica e económica de Balsa, assim como aspectos da assimilação cultural local da romanização.

O enviesamento espácio-temporal da amostra favoreceu uma recolha mais completa no período inicial. As distorções identificadas (défice grande de TSI) apenas diminuem a intensidade da evolução geral detectada.

Em contrapartida a fase posterior a 70 já não reflecte essa evolução. Há uma contradição flagrante entre o apogeu urbano (indicado pela datação das lápides, a expansão urbanística e a municipalização) e o declínio acentuado do consumo de objectos da necrópole.

Penso que essa diminuição se deve aos seguintes factores, por ordem decrescente de importância:
Enviesamento da amostra, que age no sentido de acentuar um declínio precoce e exagerado.
Diminuição real da importância da necrópole Norte (entre 70 e 175) devido à sua substituição parcial pela nova e muito maior necrópole oriental (e eventualmente outras desconhecidas) criada certamente para fazer frente ao enorme desenvolvimento urbano e à subida esperada ou verificada da população.
Encarecimento histórico das sigillatas importadas após o fim da difusão local das TSSG de baixo preço, o que originou uma baixa persistente no consumo deste tipo de produto, nomeadamente em contextos funerários.
Possível diferenciação socioeconómica da população relativamente à escolha da necrópole. O sector mais abastado pode ter mudado mais rapidamente em termos relativos, o que se reflecte na composição mais modesta dos espólios remanescentes.

A partir de 70 é portanto impossível de determinar a verdadeira frequência de uso da necrópole mas apenas estimar a tendência da sua evolução.

O enviesamento da amostra pode corrigir-se parcialmente através da logaritmização da distribuição. As variações representativas de frequência correspondem a variação de níveis de intensidade de uso, mesmo que não se possa saber o seu valor quantitativo.

As descontinuidades que provocam desvios importantes à tendência de decaimento logístico devem ser consideradas significativas e correspondentes a fenómenos reais. Esses desvios têm ainda mais importância quando se associam a épocas críticas registadas nas fontes ou na evidência material de outros locais, que pelas suas características justificam quebras ou crescimentos do uso da necrópole. Estas variações corresponderão ao impacto local dessas conjunturas gerais.

A partir de 200 a distribuição corrigida mede apenas as grandes descontinuidades e a tendência de variação mas não as amplitudes reais. Para efeitos interpretativos considera-se que as variações relativas são uma proxi adequada das variações absolutas.
 

Novo resumo da História de Balsa, com base na interpretação das séries de materiais da necrópole e dos três sectores.


Reconstituição da evolução demográfica de Balsa


101 a 31 a.n.e. Fase residual inicial
31 a 6 a.n.e. Fase de pacificação
Será possivelmente, nesta época, a única necrópole romanizada do povoado, de pequenas dimensões. Uma minoria de cerâmica comum [9%] (relativamente a fases posteriores) revela que a população mais pobre e/ou de extracto indígena é minoritária.
 

Existe um significativo predomínio precoce das sigillatas na necrópole até c. 30 n.e. relativamente aos 3 sectores. Esse predomínio absoluto da TSHP [80%] é compatível com o uso específico da necrópole por um sector culturalmente diferenciado da população, com hábitos de consumo de produtos romanos, contrariamente à generalidade da povoação nesta fase.
 

A TSHP pode interpretar-se neste contexto como um tipo de cerâmica “colonial”, substituta da TSI e própria de uma população romanizada.
 

Este perfil, associado à topografia do lugar, sugere a presença de uma guarnição militar, possivelmente por uma força hispânica proveniente da Bética, e/ou abastecida por fornecedores béticos, o que explicaria a ausência (ou o menor peso) de TSI. Seria importante obter paralelos de perfil de especialização de assentamento, para outros locais da mesma época, em que a TSHP também predomine.

Período B1: De 31 a.n.e. a 21 a.n.e.
A chegada do contingente utilizador da necrópole e possivelmente fundador desta estabelece-se nos primeiros dez anos, o que é compatível com uma ocupação das forças fiéis a Augusto posteriormente à derrota de Sexto Pompeu (35 a.n.e.).

Período B2: De 21 a.n.e. a 6 a.n.e.
O peso da TSHP tem o seu máximo em 6 a.n.e., data que estabelece o possível apogeu da ocupação militar e o início do seu rápido declínio.

6 a.n.e. a 70 n.e. Fase de colonização
Inicia-se então um processo de colonização civil, aparentemente ainda com a manutenção da guarnição até c. 10 n.e., talvez até à morte de Augusto.

Será possivelmente nesta fase que se abandona o oppidum do Cerro do Cavaco, podendo propor-se que esta primeira vaga de imigração terá tido uma origem essencialmente regional e que corresponde à primeira ocupação civil organizada do povoado.

Este processo continua até c. 35-40, quando que se verifica uma certa estagnação, que pode ser consequência dos efeitos do megasismo regional, registado em Baelo Claudia e síncrono com a aparente extinção funcional da "casa/armazém" (sector 3 da amostra dos três sectores).

Esta fase corresponde ao apogeu da frequência de achados de sigillata graças às enormes frequências da TSSG, o que permite propor que Balsa terá sido um entreposto portuário importante deste tipo de material.

A partir de 40 (Claúdio 41-54) verifica-se uma segunda vaga de crescimento até 70. A forma da curva sugere uma duplicação da "capacidade de carga" urbana, que pode ser interpretado como uma 2ª fase de urbanização e expansão urbana, associada a uma 2ª vaga de colonização.

Este período pode associar-se à politica de romanização de Cláudio I, assinalada em diversas cidades hispânicas, e à atracção exercida pelos portos algarvios no novo contexto de inclusão da Mauritânia na esfera provincial.

70 a 175. Fase de municipalização
O "momento" demográfico e socioeconómico criado localmente formará o alicerce da municipalização Flávia posterior (post quem ao Édito de Vespasiano de 73/74 que concede o Direito Latino às civitates hispânicas.).

Os efeitos que acompanham (ou precedem?) o programa de municipalização manifestam-se no decréscimo do uso da necrópole Norte a partir de 70, em contradição com o seu apogeu epigráfico, que é muito mais tardio (c. 180).

A explicação deste desfasamento deve procurar-se na substituição parcial da necrópole mais antiga por novos espaços funerários estabelecidos nos limites dos novos limites urbanos, com destaque para a grande necrópole Oriental (Arroio), a única conhecida.

A evolução do consumo de sigillatas tanto na necrópole como nos três sectores mostra uma queda acentuada e contínua entre 70 e 150, o que confirma uma conjuntura de empobrecimento relativo durante as décadas críticas da municipalização. Pode dever-se: ou ao grande aumento dos preços da oferta devido ao fim do abastecimento barato de TSSG e TSH; ou a uma perda efectiva do poder de compra dos sectores remediados.

175 a 200. Crise Antonina
O impacto da Crise Antonina (170-200) em Balsa manifesta-se claramente na diminuição síncrona repentina do uso da necrópole e no abandono de estruturas produtivas (fabrica de salgas da Quinta da Torre d'Aires). 
Esta grave crise multifactorial, que atacou a estrutura demográfica ("Peste Antonina") e a estrutura socioeconómica (expropriações e remodelação da cúpula do poder senatorial hispânico) terá sido fatal para as aspirações urbanas posteriores de Balsa e de muitas outras cidades da Hispânia.

200 a 270. Médio Império
Sucede-lhe um patamar declinante até ao último terço do séc. III, época de maior pobreza, manifestada quer no desaparecimento do escalão mais pobre do registo funerário quer pela diminuição prolongada do consumo de sigillatas nos três sectores de Balsa.

270 a 300. Crise do séc. III
A segunda grande crise, talvez a mais grave para um corpo urbano já enfraquecido, corresponde à "Crise do séc. III" (270-280), que no Golfo de Cádis foi intensamente reforçada por um novo megasismo, que destruiu Baelo Claudia e sem dúvida muitas outras cidades litorais, entre as quais Balsa. 

Aqui esta crise manifesta-se distintamente pelo declínio rápido e irreversível do uso da necrópole (sintoma de queda demográfica acentuada, possivelmente devida aos efeitos combinados da "Peste Aureliana" e do maremoto) e pela conjuntura de insegurança social retratada no tesouro escondido e não recuperado de anéis e moedas (post quem 268-270) num esgoto do balneário da Torre d'Aires, cuja função se terá extinguido também nesta época (cessação de consumo significativo de sigillatas no local).

300 a 370. Renascença Tetrárquica e Baixo-Império
O ponto de inflexão e início da recuperação relativa do uso da necrópole a partir de 300 devem explicar-se pelo restabelecimento da segurança e reorganização socioeconómica locais pela Primeira Tetrarquia. 

O sincronismo da retoma com o sucesso da campanha hispânica de Maximiano Hércules contra os piratas francos e mauritanos em 298, sugere que a pirataria terá sido, pelo menos, um dos factores da insegurança regional manifestado em Balsa.

De 300 a 370 segue-se um período de renascimento local reflectido no aumento do uso da necrópole e no enriquecimento selectivo dos seus espólios. Na realidade a amostra é muito insuficiente para permitir tirarem-se ilações seguras. 
No entanto, o crescimento específico das sigillatas com um peso desaparecido há muito, em detrimento de tipos de objectos mais baratos, sugere uma época de imigração de funcionários subalternos para um meio local já "pós-urbano", no sentido deste termo nos séculos IV a VI. 
Este renascimento administrativo acompanha-se da retoma da fábrica de salgas da Quinta da Torre d'Aires, o que sugere um quadro local de economia dirigida própria da época Tetrárquica-Constantiniana.

370 a 415. Fase de declínio final. Crise do séc. IV
Em 370-380 desencadeia-se a terceira e derradeira grande crise de Balsa, associada ao megasismo de c. 382, que arrasou irreversivelmente Gades e o que restava de Baelo Claudia. 
O uso da necrópole cai rapidamente com empobrecimento dos espólios, regressando aos níveis de 300. 

Tendo em conta os efeitos conhecidos nas cidades referidas, Balsa não passaria já de um monte de ruínas fracamente habitadas. Será desta época o início de uma possível renucleação do antigo espaço urbano, com centros na pequena colina das Antas e, talvez, em Pedras d'El-Rei e noutros não conhecidos.

De 380 a 415 a necrópole decai até se perder o registo dos espólios, o que se deve ao desaparecimento de objectos da cultura romana, o que corresponde ao fim do poder romano provincial c. 410-411.

Desconhece-se em que medida a quebra a partir de 370 se pode dever a uma dissolução do aparelho de Estado provincial e da estrutura administrativa.

Após 415. Antiguidade Tardia
Nada se sabe também sobre uma possível sobrevivência do uso da necrópole durante o séc. V, já sem espólios de cerâmica e vidros romanos.

O historial da ocupação Tardo-Antiga de Balsa só é por enquanto conhecido pela série de consumos de sigillatas na fábrica de salgas da Quinta da Torre d'Aires (sector S2 do primeiro caso de estudo), o único dos três sectores que permanece em actividade após c. 410/5, possivelmente como estação importadora ou armazenista de sigillata importada como frete de retorno da exportação de salgas.

Os elementos mais notáveis do seu historial tardio (gráfico 2.2) são: uma conjuntura depressiva de consumos entre 410 e 450, que corresponderá à instabilidade de abastecimentos que sucede às invasões bárbaras do séc. V na Península, restabelecendo-se a "normalidade" histórica (correspondente às necessidades aparentes da procura) já na 2ª metade desse século, seguida de grandes oscilações de consumo até. c. 510-520. 
Segue-se um período de declínio aparentemente exponencial do consumo até à sua extinção em inícios do séc. VII.



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