O mito de Carteia
A descoberta de moedas com a legenda Carteia em Quarteira, associada à semelhança dos topónimos, gerou uma falsa etimologia, apoiada por deficientes leituras e más interpretações dos autores latinos.
Essa identificação de Carteia com Quarteira foi desenvolvida e divulgada por Frei Vicente Salgado com aliciante fantasia (Memórias Eclesiásticas do Reino do Algarve, Lisboa 1786, pp. 48-57) e, apesar das relativas reticências deste autor, tornou-se dominante com a vulgata romântica de finais do séc. XIX.
As moedas de Carteia
Às duas moedas descobertas em Quarteira, bem descritas por V. Salgado, junta-se uma terceira, identificada por Afonso do Paço e José Ferrajota, na sua comunicação "Subsídios para uma carta arqueológica do concelho de Loulé", de 1964. Estes autores referem igualmente uma moeda idêntica a uma das descritas por Salgado, podendo ser a mesma.
Todas são fáceis de identificar através do excelente catálogo de José A. Saez Bolaño e José M. Blanco Villero, Las monedas de la Betica romana, vol. I, Conventus Gaditanus, pp. 257-292:
- V. Salgado nº 1 - Semis da 7ª cunhagem da 2ª metade do séc. II a.C., correspondente ao magistrado L. Marc. (nº 13 catálogo)
- V. Salgado nº 2/A. do Paço nº1 - Quadrante da 6ª cunhagem da 2ª metade do séc. I a.C. (nº 46 do catálogo).
- A. do Paço nº 2 - Semis da 2ª cunhagem de finais do séc. I a.C. a princípios do séc. I d.C. (nº 48 do catálogo).
Sabe-se há muito (desde, pelo menos o séc. XVI) que Carteia se situava no Cortijo de El Rocadillo, em São Roque (Cádis), então no fundo navegável da Baia de Algeciras. O tema ficou definitivamente assente desde 1888, graças a E. Hübner. (L. Roldán Gómez et alii, Carteia, Junta de Andalucia e CEPSA, 1998).
A colonia libertinorum Carteia foi a primeira colónia de direito latino estabelecida fora do território itálico, fundada em 171 a.C. para criar um quadro urbano e cívico aos descendentes de soldados romanos e de mulheres indígenas, de condição escrava. A cidade notabilizou-se graças à narrativa da sua história por Tito Lívio (Lívio, XLIII, 3).
O assentamento romano teve uma origem anterior, fenícia ou cartaginesa, segundo se depreende do topónimo, que tem como raiz o étimo fenício QRT-, significando cidade. Foi um porto importante até meados do séc. I d.C., graças à sua proximidade de África e posição no trânsito do Estreito, tendo sido posteriormente suplantada nessa função por Baelo Claudia (Bolonia, Cádis).
É hoje um sítio arqueológico de grande importância, parcialmente explorado e aberto ao público, associado a um interessante museu monográfico (http://www.ffil.uam.es/carteia/museo/).
Quarteira ?
Apesar dos factos acima descritos serem do conhecimento universal, o bairrismo semi-culto continua ainda a invocar Carteia como origem mítica de Quarteira, ou a vender a ideia como uma "teoria" válida entre muitas outras, forma demagógica de titilar os egos locais.
Não é, porém, clara a origem do nome Quarteira, que surge pela primeira vez em 1282, na forma latina erudita de quartaria (J. Pedro Machado, Dicionário Onomástico-Etimológico da Língua Portuguesa, Livros Horizonte, Lisboa 2003, vol. III, p. 1222,, verbete Quarteira).
O corónimo distribui-se numa região relativamente extensa, com vários designados (Torre, Armação, Praia, Quinta, Morgado) e localiza-se a alguns quilómetros do lugar hoje designado por Sítio dos Quartos.
Poderá tratar-se ou de uma designação relacionada com o sistema fiscal posterior à conquista portuguesa, tema que sai fora do âmbito deste post.
Poderá, porém, tratar-se de um topónimo moçárabe, podendo assim ter-se gerado durante a dominação islâmica ou ter uma raiz romana. Existem várias hipóteses, que são, infelizmente, ou problemáticas ou totalmente conjecturais. Entre elas destacamos:
- Segundo paralelos conhecido algures, a etimologia relacionaria o topónimo com um marco miliário de quatro milhas romanas, sendo porém impossível determinar um ponto significativo para o início de tal distância (quatro m.p. = 5916 m).
- Poderia também designar um território com quatro m.p. de raio, com centro em Quarteira Velha, que abrangeria efectivamente o antigo morgado de Quarteira, desde a Ponte do Barão ao Garrão, por Pedra de Água, Cabeço da Câmara e Corgo da Zorra. Esta área poderia corresponder ao território administrativo da mansio (ver adiante), demarcado do município Ossonobense.
- Poderia, finalmente, designar a quarta mansio fiscal portuária desde o Anas (Baesuris, Balsa, Ossonoba e Quatraria!).
Não há porém dúvidas sobre a grande importância da ocupação romana da zona Quarteira-Vila Moura na Época Romana.
Constituía então um lugar secundário (vicus) na provável periferia do território de Ossonoba, um dos portos notáveis do Algarve Central, uma mansio do Itinerário Antonino e um complexo industrial de grandes dimensões.
Destaca-se uma luxuosa e enorme domus palatina (sítio arqueológico de Cerro da Vila), um porto interior, uma grande fábrica de tinturaria (baphium), pelo menos um bairro residencial modesto e um ou mais estabelecimentos conserveiros.
Estas descobertas recentes são da autoria da equipa de Félix Teichner (F. Teichner, "Cerro da Vila - aglomeração secundária e centro de produção de tinturaria no sul da Província Lusitânia" in Xelb nº 5 (2005), Actas do 2º Encontro de Arqueologia do Algarve, 17-18 Outubro de 2003, C. M. Silves, Silves 2005, pp. 85-100.).
A imagem seguinte é extraída deste artigo, p. 90, com a devida deferência ao autor e editor, mostrando uma versão parcial do assentamento.
A ribeira de Quarteira terminava então num enorme páleo-estuário interior, limitado a Ocidente pela falésia do Outeiro do Casão e a Oriente pelo Cerro da Vila, que formava uma pequena península interior. O fundo do estuário atingia a área da actual quinta de Quarteira e a transgressão marítima ocupava a Oriente as áreas arenosas até Quarteira-Velha.
Uma notícia do Séc. XVII, refere uma séria de ilhas entre Albufeira e Faro, destacando uma cuja ponta se chama Pedras Negras, ao largo (Pedro Texeira, Descripción de las costas y puertos de España, 1634):
Adelante della aze la costa vna plaia en la qual está la villa de Albufeira. Tanbién en esta ensenada ay muncha pesca de atunes, que en toda esta costa los ay en gran número, rematándose esta dicha plaia con vna punta por junto a la qual se entra en el mar vn riachuelo. Y en la orilla de la parte del leuante de el se sigue la costa baxa y con vnas yslas junto a ella que sólo se diuiden de la tierra por vnos angostos canales de agua. Son todas estas yslas que uan seguiendo toda esta costa al leuante de arena. Y la punta de la primera que queda referido se llama Piedras Negras. Vna legua por entre la ysla y la tierra está vna torre que llaman Torre de la Quarteira. Della a otra legua se entra en la barra y puerto de la çiudad de Faro.
(in El Atlas del Rey Planeta, Ed. Felipe Pereda et alii, Nerea, San Sebastián 2002, p. 342, fol. 56r)
Vestígios de estruturas portuárias submersas encontradas ao largo de Quarteira, a 8-10 metros de profundidade (A. do Paço e J. Ferrajota 1964, idem, pp. 78-89), com materiais de construção romanos, também indicam que se iniciava aqui o sistema de ilhas-barreira, a cerca de 700 m da linha de costa actual (Maria C. Simplício e Pedro Barros, "'Quarteira submersa': resultados da campanha de 1998" in al'Ulyã, nº7 (1999/2000), C.M.Loulé, Loulé 2000, pp. 55-76)
Desde então tem prosseguido a erosão da linha costeira, sendo notório o desabamento do cabeço litoral do Forte Novo e o recuo anual da linha da falésia, periodicamente noticiado nos meios de comunicação.
Uma análise geológica e fisiográfica superficial parece indicar que a actual Avenida Sá Carneiro se situa parcialmente sobre um esteiro colmatado e que o porto inicial se estabeleceria no sopé da colina de Quarteira-Velha. A actual mole de betão marginal assenta sobre um cordão dunar cuja época de formação nos é desconhecida.
Reconstituição da costa de Quarteira-VilaMoura na Época Romana
Assinala-sa a evolução moderna da área urbana de Quarteira e a zona explorada do complexo arqueológico do Cerro da Vila
A ocupação romana
Na orla do antigo estuário interior existiam igualmente assentamentos romanos e, entre as ribeiras de Ludo/São Lourenço e de Quarteira, estendiam-se baterias de cetárias associadas a villae marítimas e assentamentos piscatórios, em que se destaca a villa de Loulé Velho.
Nesta última zona sucediam-se esteiros perpendiculares à costa, hoje identificados por páleo-lagoas vestigiais (Loulé Velho, Quinta do Lago e Tejo do Praio).
Topónimos da vizinhança indiciam habitats romanos ou tardo-antigos desaparecidos (Semino), mananciais sacralizados pré-cristãos (Fonte Santa, junto à antiga via), lugares de passagem da antiga via (Passil, Vale de Carros e, talvez, Corgo da Zorra) e a existência de actividade mineira (Ferraria), que muito provavelmente já existiria na época romana.
Deve ainda nota-se que toda a zona era primitivamente coberta por uma densa floresta de pinheiro manso, cujo uso como combustível industrial (mineração, conservas e tinturaria) e material de construção, nomeadamente naval, representava um importante recurso. Já no séc. XIII, Al-Himyari ainda refere o pinhal no litoral de Xantamaria al-Gharb, onde existiam estaleiros navais (Himyari,105).
Explorações recentes na villa de Loulé Velho fundamentam um trabalho de síntese sobre este local (Isabel Luzia, "O sítio arqueológico de 'Loulé Velho'" in al'Ulyã, nº10 (2004), C.M.Loulé, Loulé 2004, pp. 43-131), revelando uma ocupação continuada entre o séc. I a.C. e o séc. VI ou VII d.C., em que se destaca uma basílica páleo-cristã na fase final de ocupação.
O Itinerário XIII de Antonino: Salacia ou Salaria
A sua associação à primeira e única etapa (conhecida) do itinerário Antonino XIII, Ossonoba - Salaria (ou Salacia) não oferece dúvidas. A distância indicada de 16 m.p. corresponde exactamente ao comprimento da estrada Ossonoba a Quarteira por Marchil, Pontal, Ludo, Fonte Santa, Passil e Quarteira.
Salaria (ou Salacia, nome comum em estabelecimentos litorais) poderia ser assim o primitivo nome romano de Quarteira.
A via romana proveniente de Ossonoba prosseguia para Ocidente através da Ponte do Barão, Vale de Carros e Lajeado, na direcção de Guia e Pêra.
Outras estradas ligavam o local a Messines e a Salir-Touriz, os nós viários mais importantes do Algarve Central na sua ligação através da Serra.
Uma praefectura annonaria?
A sua função como mansio do Itinerário Antonino, associada à presença de um estabelecimento industrial de dimensões assinaláveis permite sugerir que a fábrica de tinturaria (e talvez parte das de conservas) fossem estabelecimentos estatais, ou sob controlo estatal, ligados à annona. (A. H. M. Jones, The Decline of the Ancient World, Longman, London 1966, pp. 314-15)
A grandiosa domus do Cerro da Vila não seria assim uma mera villa maritima privada mas a residência oficial da superintendência da estação annonária, o que justificaria o seu luxo, sofisticação e dimensões, muito acima dos recursos naturais da zona.
Segundo Denis van Berchen (La annona y el Itinerario Antonino (1937), anexos de El Miliario Extravagante, 4, ed. Gonzalo Arias, Ronda 2002), A. H. M. Jones (idem) e outros autores, este sistema fiscal terá tido iniciado por Séptimo Severo (193-211 d.C.) e teve o seu apogeu no Baixo-Império, após as reformas de Diocleciano (284-305 d.C.).
De facto, apenas com a pequena colecção de moedas reunidas por A. do Passo e J. Ferrajota no artigo já referido, não deixa de ser notável a ausência de espécies Alto-Imperiais. Para além das duas moedas de Carteia já referidas, do Período Republicano, são descritas mais 18 moedas, todas do Baixo-Império, desde Maximino I (235-238 d.C.) a Teodósio I (379-395 d.C.).
As villae e casais privados das redondezas formariam uma periferia articulada com o centro annonário, fornecendo sobretudo produtos piscatórios e florestais e, eventualmente, contentores cerâmicos.
De acordo com esta teoria, o lugar teria um estatuto superior ao de uma vulgar mansio não urbana do Itinerário de Antonino (estação de pernoita e posto de colecta e armazenamento fiscal, associado a uma comunidade de contribuintes), sendo possivelmente uma praefectura directamente ligada ao governo provincial e à administração das manufacturas estatais. A domus do Cerro da Vila justifica esta ilação, pois o seu luxo e dimensões colocam o estatuto do seu possessor muito acima de um simples beneficiarium (superintendente de uma mansio, com funções militares).
Boa tarde,
ReplyDeleteNo que toca à origem do nome Quarteira, essa ideia que apresenta de ter tido origem romana em Quatraria e devido a influencias moçárabes evoluido para Quartaria e finalmente na época da reconquista do Algarve, Quarteira. É muito radical. Contudo, acredita que seja uma linha de pensamento credível para uma futura tese de mestrado? Ou não vale a pena apostar...
Cumprimentos,
João Santos
Caro João Santos
ReplyDeletePenso que a hipótese de uma etimologia romana só deve ser referida por ter viabilidade linguística, pois nada mais, ao que se saiba, a fundamenta.
Permanece porém por explicar porque é que o termo já existe como QUARTARIA em 1282 (e não como CHORTARIA, por exemplo) , numa época anterior à formação toponímica portuguesa.
Um estudo sobre o topónimo teria de destrinçar diversas variantes quase homógrafas nos repertórios toponímicos modernos:
CORT- CART- QUART-
e respectivos sufíxos, tais como:
-OS, -ES, -AS, -EIRA/O/OS/AS, -ELHA/AS, -EJÃO, -EIRÃO, etc.
Cumprimentos
Luis Fraga