Materiais para um Atlas Histórico de Tavira
Uma descoberta extraordinária revela a traça urbana e os edifícios notáveis da cidade de Tavira, na sua época de esplendor quinhentista.
Trata-se de uma planta inédita de meados do séc. XVI, que chega até nós através de uma cópia efectuada cem anos mais tarde pelo pintor Leonardo di Ferrari, autor de um atlas manuscrito espanhol que esteve "perdido" no Arquivo Militar de Estocolmo até 2002.
Tavira quinhentista
No final da Idade Média e início da Idade Moderna, Tavira foi a cidade mais importante do Algarve e uma das maiores de Portugal. O seu porto era então florescente e a sua vida económica e social prosperavam com as oportunidades oferecidas pela expansão portuguesa em Marrocos.
Foi essa a época de maior importância da cidade em termos de ranking histórico nacional, situação nunca atingida nem antes nem depois.
Tavira era então o principal porto de abastecimento das praças militares norte-africanas, a maior base das milícias algarvias que acorriam à sua defesa em caso de necessidade e o centro logístico da sua retaguarda militar. Tornou-se também nesta época o maior porto mercantil do Algarve e a sua riqueza reflectia-se nas receitas fiscais, no número e qualidade da sua população e na expansão urbana associada à construção de edifícios público e privados, nos novos estilos manuelino e renascentista.
Infelizmente, até hoje, o conhecimento dos detalhes urbanos de Tavira quinhentista tem sido muito limitado. A documentação histórica disponível é escassa e pouco precisa, os vestígios arquitectónicos são interessantes mas pontuais e a arqueologia dessa época só agora se começa a revelar.
O urbanismo
A planta mais antiga da cidade, até agora conhecida, era a desenhada por Sande Vasconcelos em 1800, demasiado recente para reconstituir o aspecto da cidade na centúria de 1500, sobretudo devido às grandes transformações ocorridas após os terramotos de 1722 e 1755.
Tavira - Planta de Sande Vasconcelos (1800)
As tentativas de reconstituição da forma urbana de Tavira quinhentista têm sido escassas.Para além das descrições impressionistas de Orlando Ribeiro (Geografia e Civilização. Temas Portugueses, Centro de Estudos Geográficos, Univ. de Lisboa, Lisboa 1961, p. 134-141), Carminda Cavaco (O Algarve Oriental. I - As vilas o campo e o mar, Gabinete de Planeamento da Região do Algarve, Faro, 1976, p. 49-54) e Arnaldo Anica (Tavira e o seu Termo. Memorando Histórico, Câmara Municipal de Tavira, Tavira 1993, p. 71-80), a única tentativa topográfica foi da iniciativa de José Lamas e Carlos Duarte ("Evolução da estrutura urbana" in Plano de reabilitação e salvaguarda do centro histórico de Tavira, Câmara Municipal de Tavira, 1985, p.40-58) cuja plantas relativas aos sécs. XIII-XIV e XV-XVI (p. 45-47 op. cit.) se reproduz abaixo sobrepostas, com inclusão de níveis de cor transparente que não existem no original.
Reconstituição de Tavira Quinhentista. Montagem baseada em plantas parciais de (Lamas e Duarte, 1985)
O Atlas do Marquês de Heliche
Em 2002 o investigador espanhol Carlos Sánchez Rubio (Editorial 4 Gatos, Badajoz), enquanto classificava o acervo cartográfico do futuro museu de Badajoz, encontrou uma pista sobre um mapa antigo desta cidade que estaria guardado no Arquivo Militar de Estocolmo. Ao aprofundar o assunto "descobre" nesse arquivo um verdadeiro tesouro cartográfico relativo à península ibérica, com 313 documentos relativos ao período entre 1643 e 1797.
Neste espólio cartográfico destaca-se um atlas manuscrito até então desconhecido da historiografia peninsular, hoje conhecido por "Atlas de Heliche".
Este atlas, de que foi feito apenas um exemplar, compõe-se de cidades e planos de fortalezas do antigo império espanhol, desenhado e entre 1642 e 1645 pelo pintor e desenhador bolonhês Lorenzo di Ferrari, a mando de Gaspar de Haro y Guzmán, marquês de Heliche e do Carpio (1629-1687), Grande de Espanha, político e riquíssimo coleccionador, filho de Luis de Haro e sobrinho-neto do conde-duque de Olivares, ambos validos de Filipe IV.
Após a morte do marquês, o seu fabuloso património foi leiloado em Madrid em 1690 e o Atlas, assim como muitas outras jóias bibliográficas e documentais foram adquiridas pelo erudito e diplomata sueco Johan Sparwenfeld, às ordens do rei Carlos XI. O espólio esteve disperso por diversas instituições suecas até 1805, quando a documentação cartográfica passou para os fundos do então criado Real Arquivo Militar de Estocolmo, aí permanecendo até hoje.
O Atlas de Heliche, cujo título original é "Plantas de diferentes Plazas de España, Itália, Flandes y las Indias" contém 117 mapas, incluindo três relativos ao Algarve: Tavira, Castro Marim e Lagos, sendo os dois primeiros inéditos.
Sobre a descoberta da colecção cartográfica de Estocolmo publicaram-se recentemente duas obras, que existem em versões digitais:
- Imágenes de un imperio perdido – El Atlas del Marqués de Heliche, Rocío Sánchez Rubio, Isabel Testón Núñez, Carlos Sánchez Rubio (eds.); Presidencia de la Junta de Extremadura, Badojoz, 2004
La memoria ausente – Cartografia de España y Portugal en el Archivo Militar de Estocolmo. Siglos XVII y XVIII; Isabel Testón Núñez, Rocío Sánchez Rubio, Carlos Sánchez Rubio; Ed. 4 Gatos, Badajoz, 2006
Planta da cidade de Tavira - Leonardo de Ferrari (1655)
Uma cópia de 1645, de um original perdido
Uma planta de Tavira de meados do séc. XVII seria já uma descoberta extraordinária. No entanto, uma análise mais detalhada revela basear-se numa planta portuguesa mais antiga, que se pode datar entre 1542 e 1568, ou seja, cerca de cem anos mais antiga que o Atlas produzido por Ferrari.
O trabalho cartográfico deste autor consistiu em redesenhar plantas originais de diferentes épocas, escalas e aspectos com as dimensões apropriadas às folhas do atlas (51x36 cm) e conformes a uma norma gráfica da sua autoria. Na colecção sueca subsistem alguns dos originais utilizados por Ferrari, que permitem apreciar o elevado rigor técnico do seu trabalho. Infelizmente, os originais das plantas de Tavira e Castro Marim perderam-se.
Um original português
Embora o título e a legenda sejam em espanhol, é possível detectar a origem portuguesa do original através da palavra "braças" que não foi traduzida e da palavra "Vertas", erro de leitura de "Hortas", que o transcritor não soube traduzir. Uma sobreposição georeferenciada da Planta sobre a topografia real permite ainda confirmar que a sua régua de escala corresponde efectivamente a braças de 2.2 m, valor da braça portuguesa, distinta de coeva "braza" espanhola, de ±1.67 m.
Planta datada de meados do séc. XVI
1542 é o terminus post quem da planta original pois estão representadas já a Igreja da Misericórdia e a primitiva Igreja da Graça no edifício da antiga sinagoga, ambas fundadas nesse ano. 1568 é o terminus ante quem da planta pois nela ainda não está representada a nova igreja e convento da Graça, cujas obras se iniciaram em 1569.
É de notar que a ermida de N. S. do Loreto, já existente em 1573, ainda não é representada.
A presença de dois topónimos que datariam a Planta uns cinquenta anos mais cedo (Convento de Santa Clara, iniciado em 1509 e que terá permanecido com essa designação apenas até 1530, quando é entregue à ordem cisteriense de São Bernardo; e Judiaria, oficialmente extinta em 1497) deverá ilustrar a tendência comum para a persistência anacrónica de designações enraizadas e, provavelmente indicará uma datação mais próxima do início do intervalo, quando a memória dos nomes primitivos estaria mais fresca.
Em conclusão, é possível estabelecer a datação num intervalo de 27 anos [1542-1568], com um valor médio de 1555 associado a um erro absoluto médio de 13 anos: 1555 ± 13.
Um balanço sumário da Planta de Ferrari
Constitui, sem exagero, a maior descoberta historiográfica sobre a cidade desde o achado da Crónica da Conquista do Algarve, em 1788.
As suas principais características são as seguintes:
- Estilo cartográfico com um excelente domínio da cor e da textura como variáveis gráficas diferenciadoras de tipos corográficos auto-explicativos.
- Fidelidade topológica absoluta e elevado rigor e detalhe topográfico, bastante superiores ao da planta de Sande Vasconcelos já referida.
- Representação detalhada das fortificações manuelinas, incluindo panos da muralha e barbacã, 9 portas e 31 torres.
- Representação esquemática das plantas interiores das 13 igrejas então existentes, revelando paredes, aberturas e divisões internas, paredes e alpendres sobre pilares e, nalguns casos, contrafortes, altares e, talvez, púlpitos e pias baptismais.
- Localização e planta interior da primitiva Igreja da Graça (antiga sinagoga), apenas conhecida por uma referência documental.
- Localização e parcelário da antiga Judiaria.
- Planta dos pilares da ponte e dos seus acessos fortificados (nomeadamente da porta de São Brás, de que não se conhecia a planta), em que se destaca a ausência da quase totalidade do tabuleiro.
- Localização e planta interior da "Casa do Sal", armazém fiscal apenas conhecido pela documentação.
- Planta interior da "casa do pão" junto à ponte, antigo mercado, posto fiscal e armazém de trigo.
- Localização e planta exterior da Alfândega, incluindo a arcaria dos açougues velhos, referidas em fonte documental.
- Identificação de três fontes, dois poços, um cruzeiro inédito, um moinho de maré apenas vagamente referenciado e a planta exterior do edifício dos Pelames, até agora só conhecidos pela documentação.
- Individualização topográfica de 178 parcelas edificadas, 9 propriedades vedadas (das quais 5 hortas periféricas) e 150 arruamentos, espaços e caminhos.
Inclusão de 43 topónimos e designações.
Detalhe da Planta de Tavira, de Leonardo di Ferrari
Porta de São Brás e pilares orientais da ponte
Detalhe da Planta de Tavira, de Leonardo di Ferrari
Igreja e poço de São Roque
Porta de São Brás e pilares orientais da ponte
Detalhe da Planta de Tavira, de Leonardo di Ferrari
Igreja e poço de São Roque
O estudo da PlantaO autor desta notícia e o Campo Arqueológico de Tavira tencionam publicar uma edição crítica da Planta, acompanhada de um fac-simile na sua escala original. Contam para o efeito com uma excelente cópia digital de alta resolução, gentilmente autorizada pelo Director do Krigsarkivet de Estocolmo e cedida por Carlos Sánchez Rubio.
O estudo formal da Planta e do seu contexto urbanístico histórico está já em curso. Ele inclui uma nova síntese da forma urbana de Tavira Quinhentista, com base nos elementos da Planta de Ferrari e na compilação sistemática de elementos urbanos referenciados em fontes históricas e arqueológicas e estudos já publicados. Essa síntese terá a forma de uma carta digital interactiva associada a uma base de dados. Inclui-se abaixo uma versão estática e ainda muito preliminar.
Estudos parciais, tais como os relativos às fortificações e à estrutura interna dos edifícios representados, serão realizados por outros investigadores.
Detalhe da planta de reconstituição da forma urbana de Tavira em meados do séc. XVI.
Versão preliminar baseada na Planta de Leonardo de Ferrari e noutras fontes.
Análise tipológica da Planta de FerrariVersão preliminar baseada na Planta de Leonardo de Ferrari e noutras fontes.
O link da imagem seguinte aponta para uma versão inicial da análise tipológica da Planta de Leonardo di Ferrari, sob a forma de um mapa vectorial com níveis de visibilidade seleccionáveis. Esta análise e o respectivo mapa fazem parte do estudo da Planta, acima referido.
www.arkeotavira.com/Mapas/Ferrari/Tavira-1552-net.pdf
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