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Saturday, August 19, 2006

MONTE FIGO II: A navegação no Golfo Gaditano

O Monte Figo no sistema regional de navegação

Para se compreender a grande relevância marítima do santuário do Monte Figo (Cerro de São Miguel) na Proto-História e Antiguidade, é necessário traçar um quadro do seu significado funcional no sistema antigo de navegação regional.
Apesar da sua elevação relativamente modesta, o
Monte Figo constitui o sinal de navegação mais conspícuo do Algarve Oriental, tendo uma visibilidade marítima útil de cerca de 60 km de raio, que abrange desde a Praia da Luz, entre Sagres e Lagos, à barra de Huelva, chegando a ser visível da encosta de Mazagón, já na costa ocidental do Golfo.
Como farol diurno controlava assim o tráfego de cabotagem ao longo de 120 km de costa, sendo a sua visibilidade mais aparente a Leste do meridiano de Faro. Controlava igualmente o tráfego mais ao largo das rotas do Guadalquivir para o Atlântico e das rotas do Atlântico para o Mediterrâneo.
Servia igualmente como farol de aproximação dos portos da laguna algarvia entre Quarteira e Tavira. Em termos locais, a laguna de Faro-Olhão e o estuário do Gilão constituiriam as opções portuárias mais directas para a navegação referenciada pelo Monte Figo, embora a foz do Guadiana também possa ser referenciada, embora indirectamente, recorrendo a um alinhamento presumivelmente definido pelo rasto oceânico da corrente do rio e pelas ilhas que existiam então na boca do delta.

Foto de satélite da corrente de sedimentos do Guadiana, na actualidade.
Uma marca de localização para os navegadores da Antiguidade:

Ana amnis illic per Cynetas effluit
sulcatque glaebam. panditur rursus sinus
cavusque caespes in meridiem patet.
memorato ab amni gemina sese flumina
scindunt repente perque praedicti sinus
crassum liquorem (quippe pinguescit luto
omne hic profundum) lenta trudunt agmina.


Avieno, Ora maritima; 202-8


O regime dos ventos no Golfo de Cádis e as técnicas da navegação na Antiguidade são temas complexos, que transcendem largamente o âmbito deste post. A compreensão das suas tendências principais é porém indispensável para se poder ter uma ideia das condicionantes da navegação marítima na Antiguidade, na nossa zona de estudo. Os barcos atlânticos recorriam então ao vento e às velas como força motriz principal e utilizavam os remos como propulsão suplementar mas essencial, em casos de acalmia, travessia de barras e para vencer ventos ou correntes contrários durante períodos limitados. Bolinavam mal e tinham uma capacidade de manobra limitada, relativamente aos veleiros modernos.
Nada indica que as condições climáticas marítimas se tenham alterado significativamente desde o século VIII a.C. Os ventos dominantes variavam (e variam) segundo a zona do Golfo, segundo o esquema seguinte, grosseiramente simplificado:
1. Na costa atlântica ocidental a Norte e até ao Cabo de São Vicente predominam os ventos de Norte junto à costa.
2. Na costa norte (algarvia) predominam os ventos do quadrante Oeste, sobretudo do Sudoeste, com períodos do quadrante Leste (Levante).
3. Ao largo predominam igualmente os ventos do Oeste, sobretudo do Noroeste, com períodos de Sudeste.
4. Ao longo da costa africana predomina o vento do Sudoeste.
5. No canal do Estreito e no corredor atlântico que o continua para Oeste predominam os ventos de Leste.
6. Na costa ocidental (andaluza) predominam os ventos do Oeste com importantes períodos de ventos Leste, no canal do Guadalquivir e de origem térmica, junto à costa.

Estes ventos determinavam os percursos das principais rotas navais, abordadas mais adiante.

Os calendários naval, agro-pecuário e piscatório

A sazonalidade do clima mediterrânico originou desde muito cedo a inclusão da época navegável no calendário e no ritual religioso anual. Na Época romana a estação de navegação prolongava-se de 5 de Março a meados de Outubro, seguindo um velho ritual egípcio, provavelmente partilhado por todos os povos levantinos de navegadores, com destaque para os fenícios.
A celebração do isidis navigium, inicia a estação de navegação, dedicada a Isis, procedimento semelhante à Ploeaphesia grega, em que os navios ficam autorizados a fazer-se ao mar e este declarado como aberto à navegação.[1]
Esta data, adaptada ao Mediterrâneo, é no entanto um pouco precoce para a costa Atlântica, em que as condições de invernia ainda permanecem, pelo menos até meados de Abril.
No circuito anual da navegação fenícia, o calendário ritual dos portos atlânticos deveria assim definir uma estação de navegação mais curta. Os primeiros barcos coloniais provenientes do Mediterrâneo Levantino só chegariam por finais de Abril e os últimos partiriam ainda em Setembro.

Existia assim uma conjugação regional entre o calendário da navegação e o calendário agro-pecuário, que tem os seus pontos altos nas comemorações da fertilidade Primaveril em Maio, no solstício de Verão, auge das solenidades de ambos os ciclos, e nas festas de redistribuição de Setembro.
Este calendário conjuga-se ainda com o da pesca do atum, provavelmente o fenómeno periódico de maior importância económica e social dos povoados litorais da costa do Golfo de Cádis. O período da pesca do atum de direito decorria desde princípios de Maio a fins de Junho. A partir desta altura e até meados de Agosto decorria a pesca do atum de revés, a que sucederiam as celebrações do fim desta faina, cristianizadas sob diversas formas de culto mariano marítimo.
Esta sintonia de calendários e de auge de actividades estivais relacionadas com a abastança económica, constitui, na nossa opinião, a base sócio-económica da integração dos rituais e cultos coloniais mediterrânicos na esfera local e a base da identidade e coesão religiosa das comunidades que se estendiam entre a Serra e a Beira-Mar.
Será também a justificação da prevalência secular das tradições religiosas de origem fenícia, durante as épocas Turdetana e Romana, até à implantação do Cristianismo.

No Algarve desenvolvem-se, desde inícios do séc. XVI, formas de culto mariano associados à faina bacalhoeira sazonal na Terra Nova e Gronelândia (inícios de Abril, finais de Setembro), que se sobrepoem a formas anteriores.

Rotas de navegação no Golfo

1 Rota de cabotagem, atlântica, na Primavera

Esta rota era sobretudo utilizada no percurso de saída para o Atlântico, contrário à direcção dos ventos dominantes, do quadrante Oeste. As escalas de cabotagem, de Sul para Norte, ao longo da costa andaluza, permitiam negociar o avanço segundo o estado dos ventos térmicos, correntes e marés, tendo como consequência viagens mais longas. Processar-se-ia sobretudo na Primavera, quando estado do mar permite iniciar a estação da navegação atlântica.

A navegação a partir de Onoba (Huelva) para Ocidente era particularmente problemática por ser contrária aos ventos dominantes. As soluções técnicas mais prováveis seriam ou fazer largos bordos, em que o Monte Figo servia de importante referencial, ou utilizar os remos, negociando eventuais brisas. O Guadiana surgia como a primeira marca costeira facilmente perceptível, através do rasto marítimo deixado pela sua corrente, já referido por Avieno[2] e o Monte Figo como o segundo marco, delimitando a entrada da ou das barras de Tavira, que na Antiguidade se poderiam estender desde Cacela ou Cabanas.

A partir de Tavira ou Balsa, o cabo de Santa Maria obriga a uma ampla manobra de contorno pelo largo (cerca de 6 milhas náuticas na actualidade) para evitar os ventos de Oeste junto à restinga do cabo, susceptível de provocar naufrágios. A perpendicular do Monte Figo com a costa marca aproximadamente a barra velha de Marim, que daria acesso a Ossonoba pelo lado Ocidental, através da laguna de Olhão.

Um vento de Levante conduziria rapidamente as embarcações para a costa algarvia a partir do Estreito, porém a ondulação que quase sempre o acompanha inviabilizaria todos as barras do Sotavento, com excepção do Guadiana, e no Barlavento, inviabilizaria Lagos e Sagres (Mareta). No estado actual dos conhecimentos, o melhor porto-de-abrigo durante o Levante, para além da laguna-delta de Baesuris, parece ter sido o de Farrobilhas-Ludo, hoje desaparecido, protegido pelo Cabo de Santa Maria.

A travessia do Promontório Sacro poderia obrigar, como sucedeu até aos tempos modernos, a longas esperas num porto do Barlavento, até que os ventos permitissem um contorno do cabo pelo largo, não só evitando o Oeste contrário, antes do cabo, como o Norte logo após a sua travessia. Fontes renascentistas[3] indicam esta situação e a criação de infra-estruturas pelo Infante D. Henrique no sítio de Terçanabal, hoje associado à baía de Sagres-Mareta (ou de Belixe, em caso de Levante) junto a Sagres. O uso deste local na Antiguidade para o mesmo efeito é muito provável, não só pelas suas condições portuárias únicas junto do Cabo como pelo próprio topónimo, de origem árabe, cuja etimologia proposta é *dársena'Hanibal, isto é, uma tradução literal de Portus Hannibalis (referido por Pomponius Mela III, 1) (ver post http://imprompto.blogspot.com/2005/11/portus-hannibalis.html)

2 Rota directa pelo largo, de retorno ao Mediterrâneo, em meados do Outono

Nas rotas de retorno, do Atlântico para o Mediterrâneo, os barcos que contornavam o Cabo de São Vicente deviam forçosamente procurar uma escala de abastecimento, antes de se aventurarem à travessia do Golfo. De facto, mesmo provindos de escalas relativamente próximas na costa Ocidental (como o Sado, Melides, Sines ou a Baía do Pessegueiro), a sua autonomia limitada obrigá-los-ia a uma nova paragem. Os ventos do quadrante Oeste, dominantes após o cruzamento do Cabo, empurravam naturalmente as embarcações para um dos diversos portos disponíveis na costa algarvia. A escolha dependeria tanto de factores geopolíticos como do maior ou menor alongamento da rota no sentido Oriental, dependente da orientação do vento.

É de realçar que com um Sudoeste forte e a respectiva ondulação, situação bastante comum no Outono, os portos de Barlavento tornam-se perigosos ou difíceis, o mesmo sucedendo com o corredor da laguna de Olhão. Nestas condições Lagos/Lacobriga e Tavira surgiriam como os portos mais adequados.
Independentemente do porto-de-escala utilizado, o meridiano de rumo ao Sul devia estabelecer-se pelo Cabo Cuneo e pelo Monte Figo, de modo a aproveitar os ventos do Oeste e do Norte, mais ao largo, no sentido do Estreito.
Avieno é explícito sobre isto, constituindo a primeira abonação literária duma realidade conhecida por todos os navegadores do Golfo: A partir do Cabo de Santa Maria, os ventos dominantes do Norte e Oeste permitem uma rota directo ao Estreito[5], pelo largo acrescentaríamos nós, com uma passagem directa ao Mediterrâneo que evita as correntes costeiras contrárias.

Tratava-se assim de uma rota de retorno, a efectuar portanto em meados do Outono, com os barcos cheios, numa viagem mais rápida e sem escalas até depois das colunas de Hércules, embora haja a hipótese de uma escala junto da boca atlântica do Estreito, em porto-de-espera, devido à instabilidade provocada pelo vento Levante. O porto de Lixus (Larache) e Zilil (Arzila), na costa marroquina e ambos de fundação fenícia, seriam os locais mais prováveis.

3 Rota de retorno, pela costa da Mauritania

As rotas efectivas dependeriam porém, então tal como hoje, da resultante de forças entre Boreas (a Nortada) e Zéfiro (o Poente):

- O Poente empurra as embarcações directamente para Estreito, situação correspondente à descrição de Avieno.

- O Norte empurra-as para o largo da costa mauritana, tão a Sul quanto Mazagão/El-Jadida, onde tendem a apanhar os ventos Sudoeste aí dominantes, fazendo-as subir ao largo da costa em direcção ao Estreito.

Os estabelecimentos fenícios da costa africana atlântica têm sido sempre estudados no contexto da sua ligação bilateral directa com o Mediterrâneo, ou então, como entrepostos dependentes de Gadir. Independentemente destas realidades, devemos assinar a forte probabilidade de eles terem feito parte do sistema de escalas do comércio peninsular atlântico, devido à sua localização no percurso das rotas de navegação acima descritas.
Embora se não se conheçam referências explícitas a esta relação no período fenício, excepto a das datas coincidentes da sua fundação e extinção (entre os Sécs. VIII e VI a.C.), a sua relevância geográfica e realidade histórica posterior justifica plenamente a hipótese.
De facto o Algarve Oriental, sobretudo através dos portos de Tavira e, posteriormente, de Olhão, constitui a escala perfeita na navegação à vela para o cruzamento do Golfo de Cádis de e para a parte da costa africana actualmente marroquina.

As hipóteses desta relação entre as duas margens do Golfo durante a Época romana são ainda parcialmente conjecturais:

  • As diversas notícias sobre a “pirataria” nas duas margens do Golfo desde o final da II Guerra Púnica até Cláudio, com destaque para os episódios da viagem de Sertório, da Guerra dos Piratas de Pompeu, da “limpeza” das margens por Agripa e de um historial recorrente de invasões de lusitanos, maurii e bárbaros através do Golfo, até à Antiguidade Tardia, revela a extraordinária facilidade da navegação entre as duas margens do Golfo pelas populações ribeirinhas, desde um período indeterminado da Proto-História.
  • O desenvolvimento urbanístico de Balsa, medido pela riqueza do seu espólio arqueológico, acelera-se a partir do reinado de Cláudio I (41-54 d.C.), o que é interpretado como consequência, primeiro do apoio logístico, fornecido por Balsa e outros povoados do Algarve, aquando da revolta mauritana e, segundo, pela inclusão da Mauritânia Tingitana no Império a partir desta época. A criação e desenvolvimento de cidades romanas no litoral africano (como Salla) influenciaram sem dúvida o crescimento do tráfico bilateral no Golfo, contribuindo significativamente para o apogeu económico de Balsa e para a influência africana manifestada na epigrafia desta cidade, que não deve ser procurada apenas na província de Bizacena[6].
  • Mais tarde, no século III, a invasão dos maurii que atinge Italica, Baelo e quase seguramente a costa algarvia, exemplifica a fragilidade sentida ao longo da História pelas cidades e povoamentos costeiros da orla do Golfo, em conjunturas de insegurança ou guerra declarada.

Posteriormente, o próprio desenvolvimento da Tavira islâmica, a partir do século XI, terá estado certamente associado ao aumento de tráfego marítimo e de intercâmbios populacionais entre as duas margens do Golfo, posteriores ao acesso ao poder na Península pelas dinastias berberes.
Esse papel de Tavira reforça-se posteriormente já sob domínio português, como principal centro fornecedor das praças ocupadas pelos portugueses no Norte de África, nos sécs. XV e XVI, sendo a grande facilidade de contactos ilustrada pela presença de milícias defensivas dessas praças, habitando no Algarve português, nessa mesma época. Estas milícias, provenientes de sítios tão remotos como Estoi, em caso de ataque acorriam por barco à defesa das praças africanas, cujos fornecimentos mais elementares provinham igualmente das bases algarvias.
Os inúmeros episódios de corso entre as duas margens, até finais do séc. XVIII, e o permanente fluxo piscatório e humano que se manteve até à actualidade, sobretudo na zona de Larache, sendo comuns os filhos de pescadores nascidos em Marrocos, são um rol de situações, que ilustram mais recentemente, a grande importância e facilidade desta rota ao longo dos séculos.

Esta realidade permite colocar hipóteses que relacionem os assentamentos fenícios do Algarve, nomeadamente de Tavira, com os da costa ocidental Norte Africana, cuja criação, sobrevivência e destruição ou abandono parecem ter sido paralelos. É portanto perfeitamente plausível que a região cunea constituísse o vértice de uma rota triangular entre a Costa Africana e o Estreito, utilizada quando as condições adversas impedissem uma navegação directa.

NOTAS

[1] Apuleio (Metamorphoses XI) e Joannes Lydus (De mensibus IV, 45)
[2] O.M. 205-211. O rasto é ainda observável na actualidade. Ver, por exemplo http://eol.jsc.nasa.gov/scripts/sseop/QuickView.pl?directory=ESC&ID=ISS006-E-9576
[3] IRIA, Alberto. Itinerário do Infante Dom Henrique no Algarve, Faro 1960: 36, 49
[4] Proposta de Adel Sidarus, com a grafia de CORRIENTE, Federico. Diccionario de arabismos y voces afines en iberorromance, Gredos, Madrid 1999: 231, verbete arsenal
[5] Os versos de Avieno acima transcritos
[6] Na costa Oriental da Tunísia, a Sul de Cartago.

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