No Algarve, após a conquista portuguesa, o principal esforço religioso das autoridades centrou-se na cristianização dos centros urbanos, pela rededicação das mesquitas a Santa Maria e Santiago (com excepção do caso de Loulé) e fundação de conventos.
A partir do séc. XV iniciam-se novas construções religiosas com dedicações medievais, reflectindo a colonização de populações portuguesas nos principais povoados secundários e a expansão urbana.
Desconhece-se o quadro das rededicações cristãs provocadas pela colonização portuguesa no âmbito rural assim como das importações de crenças religiosas e rituais e tradições da esfera sobrenatural.
Em meios rurais não senhoriais (a Igreja da Senhora de Guadalupe não pertence a este grupo) não há praticamente notícias de constituição de igrejas novas, com novos padroeiros, antes do séc. XV.
Após a expulsão dos mouriscos e judeus, o controlo e a repressão pela hierarquia católica pós-Trentina foram particularmente rigorosas. A perseguição atingiu os cultos rurais de raiz moçárabe, dando origem a numerosas deslocações de lugares de culto, obliteração de sítios ancestrais da sacralidade popular e rededicações mais de acordo com o espírito da ortodoxia.
A partir do séc. XVI verifica-se uma evidente desfuncionalização dos cultos nas áreas agro-pecuária, médica e reprodutiva, e a sua substituição por novas entidades enquadráveis no novo discurso ideológico e moralista do clero, fortemente centrado no controlo da vida religiosa, civil e privada dos habitantes rurais.
Este processo acompanhou-se de uma tentativa, imperfeitamente conseguida, de expurgar o calendário cíclico dos seus vestígios pré-cristãos, através do seu ajustamento ao calendário litúrgico.
É o caso, sobretudo dos cultos marianos (Rosário, Conceição, Graça, Piedade, Luz) e hagiológicos directamente ligados ao ciclo cristológico (donde a provável manutenção dos templos e lugares já previamente dedicados ao culto dos apóstolos, de origem muito antiga) e à vida espiritual abstracta.
Pelo contrário, as populações continuavam a traduzir as suas preocupações específicas da esfera material através da religião, articulando um rol de datas de calendário e de devoções especializadas ancestrais com uma oferta de lugares de culto, na sua grande parte muito antigos.
Aprofundou-se uma clara distinção entre as igrejas de culto quotidiano, muitos deles bastante recentes, e os santuários de devoção especializada, geralmente muito mais antigos.
O mercado das "virtudes" procuradas pela devoção popular fica assim, a partir do séc. XVI, sob o apertado controlo das autoridades eclesiásticas.
O enorme crescimento da oferta religiosa é um dos sinais de marca do Antigo Regime: paróquias, associações religiosas e, sobretudo, as ordens religiosas fomentaram a criação de novos santuários e concorriam entre si através dos milagres e virtudes de cada um.
Favoreciam-se os santuários multivalentes, sem especialização funcional, não só por razões doutrinais mas também para diversificar as devoções procuradas, embora nunca desapareçam totalmente os catálogos de "especialidades" próprias de cada santuário.
As consequências gerais da hegemonia católica trentina são bem conhecidas: ascensão da irracionalidade religiosa na condução de todas as esferas da vida; aumento do peso demográfico e social da população ocupada na esfera religiosa; e o correspondente crescimento do excedente social consumido em devoções e convertido em rendimentos e bens eclesiásticos, onde se destacam as novas construções, prebendas, recheios e atavios.
Este processo conduziu à exacerbação da concorrência entre santuários, gerando uma crise apreciável a partir do séc. XVIII.
Desde então verifica-se que as modas religiosas passam a reger o sucesso ou falência de numerosos santuários, tendo muitos deles entrados na obscuridade ou desaparecido, abandonados ou destruídos sem reconstrução.
Cito apenas os casos da Fonte Santa da Luz a partir de finais do séc. XIV, da Luz de Tavira (que substituiu o anterior) a partir do séc. XVII e da Senhora da Ajuda de Alvor partir do séc. XVIII, (destruído pelo maremoto de 1755) como exemplos importantes do primeiro e do último caso.
Na Região, o bispo do Algarve converte-se na principal autoridade não militar da província, com amplos poderes civis.
A partir do séc. XVII torna-se notória a intromissão do poder religioso na esfera civil e pessoal, manifestada através de uma abundante legislação coerciva, que se mantém até ao final do Antigo Regime.
Os cultos hagiológicos e marianos antigos, de cariz naturalista e ligados às funções produtiva, médica, sexual e fertilizadora são ou extintos ou profundamente transformados, tendendo a tornar-se santuários generalistas, associados a comunidades territoriais ou a cultos marginais anuais onde sobrevive a funcionalidade original (caso das Senhoras da Ajuda, Conceição, etc., em que a ortodoxia do ritual continua a associar-se à ablução com águas profiláticas do foro feminino).
É desde o séc. XIV e XV que se constituem todos os santuários importantes que sobreviveram até à actualidade.
Os casos da Senhora da Luz, da Senhora das Ajuda e de Santa Catarina (Tavira) e da Senhora da Piedade (Loulé) são exemplares neste sentido. O mesmo se passa com o culto de são Brás, cujas raízes primitivas moçárabes são totalmente obliteradas pela repressão explícita das "bênçãos do gado", transformando-se em São Brás de Alportel, numa festa pascal com fortes conotações cristãs-novas a partir do séc. XVII ou XVIII.
Os rituais cíclicos pré-cristãos que sobreviveram até à actualidade já sem carácter religioso, mantêm-se em locais que nunca foram apropriados pelo clero, por a sua cristianização anterior ser ou muito superficial (como é o caso do Cerro de São Miguel) ou inexistente , como a Fonte da Benémola, Pego do Inferno e outros semelhantes, cuja tradição entretanto se perdeu, estando associados a datas nunca totalmente integradas no cânone católico (Dia de Maio, São João, São Miguel de Setembro).
Os demais rituais ou se extinguiram ou foram totalmente integrados desde o início no calendário litúrgico católico (Dia dos Mortos, Festas marianas de Agosto)
Os rituais próprios de lugares que sobreviveram transformaram-se em superstições e lendas folclóricas locais ou no seu reflexo toponímico, por vezes coadjuvado por lendas cristãs e vestígios arqueológicos quase sempre pouco específicos.
Deve avaliar-se com cuidado a origem geográfica e cultural das crenças e rituais de índole etnográfico, nomeadamente as associadas a festividades cíclicas.
Se nos centros urbanos é norma a imposição de modelos importados correntes noutros pontos do país (Janeiras, Maio, São João) já nos meios rurais as tradições podem ser autóctones, sobretudo quando associadas a lugares de topografia sagrada, ou importadas por comunidades migrantes organizadas quando se tratam de festas cíclicas especificas (caso hipotético de colonização alentejana recente de origem baixo-alentejana no Algarve Oriental, posterior às Guerras Civis, com a sua forma peculiar da celebração do dia de Maio).
Bibliografia principal
A incluir brevemente...
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